Notícia

Soft Power do Catar – como megaeventos esportivos se tornaram estratégias de política e diplomacia pública de estados emergentes

Resumo: Este artigo apresenta o conceito teórico de Soft Power e a frequente estratégia de países emergentes sediarem megaeventos esportivos para ampliarem seu protagonismo internacional. O texto apresenta um framework para mensurar e analisar formas de exercer soft power e o ineditismo de incluir a área de propriedade intelectual nesse contexto.

Introdução:

2022 é ano de Copa do Mundo da FIFA e teremos pela primeira vez um megaevento esportivo desta dimensão no mundo árabe. Para o público brasileiro, é sempre uma oportunidade de exacerbar emoções e torcer por um esporte em que somos uma potência – o futebol. Para o público mais atento na esfera geopolítica internacional, é mais uma evidência de um movimento que prestigia países emergentes como sedes de competições importantes: Jogos Olímpicos de Pequim em 2008 (China), Copa do Mundo de 2010 na África do Sul, Jogos da Comunidade Britânica (Commonwealth) na Índia em 2010, Copa do Mundo de 2014 no Brasil, Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016 (Brasil), Copa do Mundo de 2018 na Rússia e agora a Copa do Mundo de 2022 no Catar.

O uso do esporte como arena de competição política e ideológica é antiga. Nos jogos Olímpicos de Berlim em 1936, Hitler usou a competição como construção estratégica de fortalecimento do sentimento nacional e promoção do nazismo. Em outros momentos, o esporte foi utilizado como um instrumento ideológico de demonstração de força, principalmente na Guerra Fria na disputa pela hegemonia de poder entre Estados Unidos e a extinta União Soviética, passando pelos boicotes dos jogos olímpicos de Moscou (1980) e Los Angeles (1984). Na busca pela performance “política”, houve diversos casos de doping de atletas da Alemanha Oriental e a expatriação de atletas cubanos.

Sendo assim, a relevância destes megaeventos esportivos não pode ser ignorada para o impacto na imagem do país no sistema internacional, que de acordo com Grix & Lee (2013) revela o uso de diplomacia pública para exercer uma liderança global, não regional, e uma forma relativamente barata de promoção que permite uma mídia espontânea e imensa divulgação da imagem do país e do governo, com estratégias para capitalizar em termos de credibilidade, estatura, competitividade econômica e uma possibilidade de atuar com agência no palco internacional.

Até a China, que além das olimpíadas de verão em 2008 vai sediar as olimpíadas de inverno, em 2022, também na capital Pequim, usa dessa estratégia para se estabilizar como liderança não apenas asiática, mas global. Para Repnikova (2022), para crescer como potência e até se expandir economicamente, a China precisa sair da sombra do Ocidente e ter mais reconhecimento e influência na opinião pública global. A rigor, respeito e legitimidade externa significam legitimidade doméstica para Pequim.

A novidade é que o esporte, no geral, e os megaeventos esportivos, no particular, se tornaram um poderoso instrumento de política externa conhecido como soft power, ou poder brando.

Soft Power – conceitos e estratégias

O conceito de soft power foi desenvolvido por Joseph Nye para explicar a demonstração de poder através da atração e não da coerção. Para ilustrar seu conceito, Nye usa a teoria do tabuleiro de xadrez tridimensional, no qual a primeira dimensão seria um tabuleiro de força militar, onde os EUA dominam as peças com dez vezes mais poder do que os dez abaixo dele somados. O segundo tabuleiro seria o da esfera econômica, onde os EUA ainda lideram, mas seguido de perto por outros atores fortes. Nye define essas duas dimensões de hard power, ou poder bruto, onde a coerção e ameaça são instrumentos fortes. A terceira dimensão deste tabuleiro seria o transnacional, com agências internacionais, mídia e o impacto da internet na era contemporânea que tornam as ações sem fronteiras. Este seria o contexto do soft power, ou poder brando, onde a influência e capacidade de atrair os outros atores àquilo que você deseja são exercidas através da cultura, ideias e das políticas adotadas com o objetivo de influenciar as instituições internacionais para determinar a agenda do debate.

De forma mais detalhada, o que a ciência política chama de “poder” é a habilidade de afetar os outros para conseguir as coisas que você quer. Tal objetivo passa por três estratégias: (1) pela ameaça do uso de força ou coerção; (2) pela punição econômica, sanções ou multas e (3) pela atração. As duas primeiras maneiras Nye chamou de hard power e a última, de soft power. Quando se trata de um país, os três pilares de influência são valores (ideologia), cultura e política externa. As táticas para essas estratégias variam. Gueraldi (2005) pesquisou as ferramentas utilizadas na política externa “Ativa e Altiva” de Celso Amorim no governo Lula, com a campanha Fome Zero, o uso da seleção brasileira de futebol no Haiti e outras movimentos financeiros que fizeram o país ser credor do FMI. Repnikova (2022) cita como táticas de soft power da China a expansão do Instituto Confúcio pelo mundo, a ajuda de $ 500 milhões para o desenvolvimento de países da América Central, a retirada de 700 milhões de chineses da pobreza, além da taxa de crescimento econômico e de urbanização do país. Em alguns casos, como a da China, é possível perceber a combinação do poder econômico (hard power) com o político e cultural (soft power) para gerar o que Nye batizou de smart power, o poder inteligente.

De acordo com Grix & Lee (2013), sediar eventos de grande visibilidade é uma oportunidade de divulgar seus próprios valores para o mundo e potencializar sua área de influência para além de dimensões e fronteiras regionais. Um palco como Copa do Mundo e Olimpíada favorece pleitos para entrar em fóruns privilegiados de negociação e poder econômico, como a OMC (para a China ao anunciar que iria sediar os Jogos Olímpicos de 2008) e G20 (para a África do Sul após Copa de 2010). Essa capacidade de gerar atratividade internacional ocorre mesmo se houver uma pouco atraente política doméstica, como o caso do Catar em 2022. Para o país, sediar a Copa do Mundo serve como um veículo para alcançar a Visão Nacional do Catar 2030[1] (QNV 2030), uma iniciativa do governo para transformar o Catar em uma sociedade global.

Tal visibilidade se deve pelo tempo de pautas na mídia que extrapolam a cobertura esportiva. As sedes das copas e olimpíadas costumam ser definidas com sete anos de antecedência. Esse é o tempo que o país será assunto na mídia desde a definição da sede, passando pelo planejamento, pelas reformas até a chegada dos atletas. As grandes empresas de mídia costumam contextualizar a audiência realçando a história, as curiosidades e os valores daquele país sede. Com isso, surge um potencial para desenvolver a chamada diplomacia pública para atrair o interesse de cidadãos (e empresas) de outros países pela mídia global.  

Diplomacia pública é, no sentido clássico, uma diplomacia direcionada ao público de outros países em vez de focar em governos e políticos, como faz a diplomacia tradicional. Desta forma, sediar megaeventos esportivos se encaixa nessa definição uma vez que atrai públicos (jogadores, torcida, profissionais de comunicação) de variados países para uma audiência mundial. Essas competições atraem corações e mentes de bilhões de telespectadores, além de olhos e oportunidades comerciais. O resultado pode ser a melhora na divulgação e qualidade da imagem do país, aumento da credibilidade política e econômica, atração de turismo durante e após o evento, aumento de investimento e comércio. A diplomacia pública também é um instrumento de soft power no sentido de sediar grandes eventos em busca prestígio e credibilidade internacional e potencial papel de agência.

China, com os Jogos Olímpicos de Pequim em 2008, foi o primeiro grande exemplo de plataforma de inserção internacional. Para Repnikova (2022) e Grix & Lee (2013), o Partido Comunista Chinês usou a oportunidade para apresentar um país transformado à comunidade internacional, ao se apresentar não apenas como uma potência regional, mas mundial. O país passou a participar mais ativamente em assuntos globais e a defender reformas responsáveis em organismos internacionais, como a Organização Mundial de Comércio (OMC).

Em 2010, a estimativa da FIFA é que a copa do mundo da África do Sul atingiu uma visibilidade de 46% do mundo, servindo como uma grande plataforma de comunicação para melhorar a imagem do país internacionalmente. Apesar dos riscos de divulgar o quadro interno do país, como alta taxa de infecção de HIV, violência urbana e pobreza, autoridades consideram que foi a partir da copa de 2010 que a nova democracia sul-africana entrou no mapa e a possibilidade de se tornar uma potência média internacional. Por sinal, em dezembro de 2010, a África do Sul se juntou aos BRICS, bloco de países emergentes composto por Brasil, Rússia, Índia e China. De acordo com Grix & Lee (2013), as análises de discurso e conteúdo a partir de reportagens da mídia internacional revelam que houve uma mudança da imagem do país de contexto negativo para positivo. Além disso, o país recebeu 309 mil estrangeiros, que disseram que nunca consideraram visitar a África do Sul. A copa não teve um retorno financeiro grande, mas mudou a percepção internacional sobre o país-sede.

Na concepção inicial de Nye, na década de 1980, havia três pilares que sustentavam o soft power: valores políticos, cultura e política externa. À medida que o conceito se popularizou e outros acadêmicos se debruçaram na pesquisa do comportamento político em busca de legitimidade para influenciar palcos de atuação internacional com organizações multilaterais, novos recursos foram definidos. Grix & Brannagan (2016) apresentaram um modelo de análise de soft power em cinco pilares: cultura, turismo, branding, diplomacia e comércio. E aí surge uma oportunidade para a comunidade de propriedade intelectual se interessar pelo tema.

Oportunidades para PI

O próprio criador do termo soft power, Joseph Nye, alega que esse poder brando não é apenas a habilidade de persuadir, mas de atrair e até de ser imitado. Na perspectiva de propriedade intelectual, imitar é um crime, mas aqui é uma inspiração. Armando Nogueira, que foi o diretor de jornalismo da Globo nas décadas de 1970 e 1980 dizia que “imitar é a melhor forma de elogiar”, uma vez que os padrões da Globo eram emulados em outras emissoras concorrentes. A questão é como garantir que essa imitação seja adequadamente remunerada. Essa atração passa pela cultura, pelos valores e políticas (de estados ou empresas) que funcionam de forma autêntica. Sem essa credibilidade, o soft power não é possível.

Nesse contexto, esporte deixa de ser um nicho de instituição cultural para aplicação doméstica e se torna uma relevante ferramenta de política externa. A Premier League, a primeira divisão de futebol da Inglaterra, é um exemplo de investimento, marcas, atração de interesse e capital e até de exportação de modelo de sucesso. Jogadores desejam estar ali e o público deseja consumir aquele espetáculo. O mesmo ocorre em megaeventos esportivos. De acordo com Chien-Yu Lin, Ping-Chao Lee e Hui-Fang Nai (2008), os países buscam sediar tais competições para atrair outros governos e pessoas com seus valores e cultura, para que eles desejem o que o país sede tem a oferecer, projetando sua imagem, princípios, conquistas e visão de política externa.

Grix & Brannagan (2016) apresentaram um modelo de análise de soft power na tentativa de tornar tangível o legado, qualificando a imagem do país e colocá-lo no mapa internacional. Esse modelo apresenta cinco pilares de recursos com variados parâmetros.

Cultura: língua, esporte, artes, educação, religião, culinária, diversidade, valores e moral.

Turismo: o quão exótico é o país, infraestrutura de transportes, turismo de lazer, turismo cultural, turismo de negócios, turismo social, turismo esportivo.

Branding: quão única é sua marca, identidade nacional, cultural, governança, exportações, investimentos, eventos esportivos.

Diplomacia: acordos bilaterais, acordos multilaterais, ideologias, instituições, políticas, bem-estar social, interesses nacionais, eventos esportivos.

Comércio: elevada infraestrutura, flexibilidade de horas de trabalho, tecnologia, segurança, regulações, remoção de barreiras comerciais, investimentos externos diretos.

O pilar de branding como um recurso de soft power já justificaria o interesse de propriedade intelectual, por atuar diretamente com marcas, e poderia explorar contribuições de indicação geográfica, por exemplo. Há diversas áreas em que PI atua e estão inseridas no contexto de um megaevento esportivo, como naming rights, pirataria de uniformes, espionagem de processos e metodologias de treinos, direitos de imagem de atletas, dentre tantos outros. A área de comércio, com foco em segurança e tecnologia, também está diretamente ligada com assuntos de PI. E até questões de ESG (fatores ambientais, sociais e de governança) podem ser trabalhadas dentro do framework de soft power, em todos os pilares de recursos. A agenda ESG também seria um fator de atração e influência na sociedade moderna de soft power quando trazemos o conceito para a esfera privada.

Este modelo ajuda a buscar resultados tangíveis que comprovem a eficiência do uso de soft power, onde sediar megaeventos esportivos seria uma tática. Mesmo assim, acadêmicos reconhecem a dificuldade de mensurar tais resultados, uma vez que eles rendem a longo prazo. Mas alguns dados revelam o tamanho do sucesso de algumas iniciativas.

A Comissão de Turismo da Austrália acredita que os Jogos Olímpicos de Sydney (2000) aceleraram em 10 anos a “marca” australiana. Durante a Copa do Mundo de 2006, a Alemanha recebeu 2 milhões de visitantes estrangeiros durante a copa do mundo e gastaram 600 milhões de euros. Em 2010, a África do Sul recebeu um elevado número de turistas que jamais imaginaram visitar o país.

De acordo com autoridades do Catar, uma das razões de o estado não conseguir atrair mais turistas de longo prazo se deve à imagem que a mídia faz dos países do Oriente Médio como uma região homogênea e amaldiçoada por guerras civis. Sediar a Copa do Mundo seria uma forma de “educar” o público internacional sobre as diferenças entre o Catar e outros países árabes. O objetivo do Comitê Organizador da Copa do Mundo de 2022 é mostrar que o país é um destino turístico pacífico. O evento seria o ápice da estratégia de soft power catari que começou com o patrocínio exclusivo do Barcelona em 2010, na época áurea do clube catalão, e compra do Paris Saint-Germain (PSG) em 2012 e a estratégia recente de contratar craques como Neymar, Mbappé e Messi.

Conclusão

O uso de soft power por estados emergentes funciona com alternativa à ausência, ou fraqueza, do hard power (poder militar e econômico) e permite uma maior inserção e participação no sistema internacional. Sediar megaeventos esportivos, como copa do mundo e olimpíadas, permite um protagonismo internacional, com poder de atração e visibilidade por envolver patrocínios e transações com as maiores empresas no mercado. Os governos aproveitam o período de mídia espontânea para melhorar sua imagem e transmitir valores que possam aumentar a legitimidade e credibilidade internacional de seu status, que costumam ganhar posições de líderes regionais ou até mesmo globais.

O aumento da influência do termo soft power permitiu que novos acadêmicos estudassem e modelassem formas de estruturar esse poder brando, o que se revelou muito atraente para os profissionais de propriedade intelectual, por atuarem com branding, marcas, direitos autorias, cultura, artes, comércio e até itens da agenda ESG, como diversidade, turismo social e valores políticos e de governança.

Vale ressaltar que, apesar de a teoria ter sido idealizada para estados nações, o framework de soft power pode ser aplicado também em empresas. E assim como a agenda ESG tem o termo greenwashing, o uso inadequado e meramente publicitário do esporte gerou o termo sportswashing. SøYLAND (2020) detalha as críticas que o Catar recebeu de violação de direitos humanos e trabalhos em regime semiescravo durante as obras de preparação para a copa do mundo, além de alegações de corrupção. O conceito de lavagem desportiva encaixa na estratégia desportiva do Qatar que procura deliberadamente alterar a sua reputação global através da sua associação a dispostos de atração global, enquanto desvia sem sucesso a atenção dos seus problemas políticos internos. 

Além disso, o país certamente será cobrado pela sua população e a comunidade internacional sobre o pós-evento. Embora as previsões indiquem que a economia do Catar crescerá 3,4% em 2022 e 2023, impulsionada pela Copa, o cenário é de desaceleração em 2024 para 1,7%. O país enfrentará o desafio de capitalizar os $ 200 bilhões investidos para o megaevento e dar nova utilidade às instalações e infraestrutura construída para a Copa. No caso do Brasil, por exemplo, durante as Olimpíadas de 2016, o Rio de Janeiro gastou em torno de $ 7 bilhões em infraestrutura. Os organizadores planejavam realizar eventos locais nas instalações após os jogos, mas em sua grande maioria, encontram-se abandonados ou precisando de manutenção. Os benefícios a longo prazo, portanto, deixaram a desejar.

Referências Bibliográficas

CHIEN-YU LIN, PING-CHAO LEE, and HUI-FANG NAI, “Theorizing the Role of Sports in State-Politics,” International Journal of Sport and Exercise Science, 1/1 (2008), 23–32.)

GUERALDI, Ronaldo Guimarães. A Aplicação do Conceito de Poder Brando (soft power) na Política Externa Brasileira, 2005. Disponível em: <http://www.anpad.org.br/diversos/trabalhos/EnANPAD/enanpad_2005/APS/2005_APSB2081.pdf&gt; <Acesso em 15 setembro, 2022>

GRIX, Jonathan & BRANNAGAN, Paul Michael (2016) Of Mechanisms and Myths: Conceptualising States’ “Soft Power” Strategies through Sports Mega-Events, Diplomacy & Statecraft, 27:2, 251-272

GRIX, Jonathan & LEE, Donna (2013) Soft Power, Sports Mega-Events and Emerging States: The Lure of the Politics of Attraction, Global Society, 27:4, 521-536,

REPNIKOVA, Maria (2022) The Balance of Soft Power – The American and Chinese Quests to Win Hearts and Minds. Foreign Affairs, July/August 2022 – pgs 44-51

SøYLAND, H. S. (2020). Qatar’s sports strategy: a case of sports diplomacy or sportswashing? [Dissertação de mestrado, Iscte – Instituto Universitário de Lisboa]. Repositório do Iscte. http://hdl.handle.net/10071/22176 <Acesso em 15 setembro, 2022>


[1] https://www.wilsoncenter.org/article/2022-fifa-world-cup-qatars-catalyst-propel-development-and-soft-power#:~:text=Forecasts%20indicate%20that%20Qatar’s%20economy,to%20sustain%20strong%20GDP%20growth. <Acessado em 26 de outubro de 2022>

Nossas
Especialidades

Veja nossas principais áreas de atuação