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Tempos Modernos II – O Fim do Emprego de Carlitos

Por: Glauco Cavalcanti

Se Chaplin fizesse um filme retratando a realidade do emprego neste mundo pós COVID-19, certamente Carlitos não estaria girando nos eixos metálicos das indústrias. Provavelmente seria um homem sentado em seu home office com um computador à sua frente com uma agenda repleta de reuniões no Teams e algumas LIVES para assistir à noite. Com aquele jeito desastrado que só Chaplin conseguia interpretar, o novo Carlitos estaria de um lado para o outro em sua casa com um celular na mão, enviando mensagens pelo Whatsapp dizendo para as pessoas que não tinha mais tempo. O tempo que antes era ditado pela velocidade da máquina, agora era comandado pela velocidade das informações e dos acontecimentos. Carlitos seria o exemplo do executivo trabalhador que fez de tudo pela empresa e um belo dia é demitido e perde o emprego.

 Neste cenário melodramático, o desempregado Carlitos acaba ficando sem perspectivas e o dinheiro vai acabando, as opções vão se esgotando e as empresas o rejeitam porque ele está desatualizado. Ele não serve mais para este mundo “Super VUCA”. No final do suposto filme, Carlitos viraria um vagabundo, sentado na calçada pedindo esmola ao lado de seu adorável cão, seu único e verdadeiro amigo nesta sociedade pós COVID-19. Agora por ironia do destino, ambos teriam todo tempo do mundo para pensarem na vida, nas pessoas e no fim do emprego.

“A sociedade em que cada qual podia esperar ter um lugar, um futuro direcionado, uma segurança, uma utilidade, essa sociedade – a sociedade do trabalho – está morta”.

André Gorz – Sociólogo Francês

Embora o cenário que descrevi seja uma sátira aos nossos “tempos modernos”, retrata a realidade vivida por milhares de executivos que se deparam com uma sociedade que vive o fim do emprego. Uma sociedade onde o mundo digital substituiu o homem e os novos modelos de gestão demandam estruturas mais enxutas, criando assim uma legião de indivíduos sem empregos tradicionais.

Esse artigo tem como principal objetivo levantar questões sobre o paradoxo que existe na nova sociedade sem emprego – quanto mais os indivíduos buscam a segurança, mais se afastam dela – mas o artigo não tem a pretensão de responder estas questões complexas, apenas levar o leitor à reflexão sobre a nova sociedade sem emprego.

Para começar o exercício mental, pensemos sobre a origem desta busca pela segurança. O que leva um indivíduo a querer trabalhar com horários rígidos, ter um salário mensal e se sujeitar a ter um chefe?

q  Será que a Família é a Base do Pensamento Focado na Segurança?

Em seguida refletiremos sobre a nova sociedade sem emprego, buscando entender se existe atualmente segurança dentro das organizações.

  • Existe segurança em uma carreira focada em organizações formais?

Por fim pensemos sobre o empreendedorismo e formas alternativas de geração de renda.

  • Será que o empreendedor é o personagem central desta nova sociedade?

Estas três perguntas estão longe de serem suficientes para esgotar um assunto de tamanha complexidade, mas servem de faísca para acender o barril de pólvora que está prestes a explodir.  Por fim, faço uma breve conclusão, trazendo uma opinião própria a fim de expressar meu otimismo frente ao cenário exposto.

1 – Será que a Família é a Base do Pensamento Focado na Segurança?

A família é, sem dúvida, a primeira referência organizacional que o indivíduo possui. Ser membro de uma família significa receber um sobrenome e saber que todo dia alguém (o pai ou a mãe) estará garantindo o sustento desta organização. Durante anos o indivíduo convive com esta referência em sua mente, uma estrutura paternalista ou matriarcal que garante seu sustento lhe provendo alimento, educação, saúde e segurança. O indivíduo acorda de manhã e sabe quais são seus deveres, possui uma vida regrada e cheia de rotinas impostas pela família. Quando está no colégio é cobrado pelas suas notas e recebe mesada para comprar artigos de sua necessidade. 

Não seria esta a estrutura adotada também pelas empresas? As empresas fornecem ticket restaurante, treinamento, plano de saúde e plano de carreira aos seus funcionários. O indivíduo recebe salário mensal e também é cobrado por resultados. Até sobrenome o funcionário recebe, passa a ser reconhecido como “fulano” da empresa XYZ. O funcionário tem hora para entrar, hora para sair e tem que pedir permissão à chefia caso tenha que ausentar para resolver problemas pessoais.

Se compararmos o que oferecem a família e as empresas, podemos notar alguma semelhança conforme gráfico abaixo:

Quando pensamos que um indivíduo passa em média os primeiros vinte anos da sua vida imerso na organização chamada “família”, algumas perguntas surgem, tais como:

  • Será que a família afeta a decisão do indivíduo de trabalhar para uma organização ou se arriscar em seu próprio negócio; até que ponto?
  • Famílias empreendedoras geram filhos empreendedores? Seria a hora das famílias preparem seus membros para a nova sociedade sem emprego, ou seja, sendo menos superprotetoras?
  • Será que os indivíduos identificam nas organizações a segurança que sempre tiveram nas suas famílias? Há relação subconsciente entre família e organização na mente dos indivíduos?

De acordo com o antropólogo Roberto DaMatta, o indivíduo convive a um só tempo com duas realidades antagônicas, uma “institucionalista” que segue a lógica da economia e representa a realidade do mercado no qual as empresas estão inseridas. A outra, pode se chamar “culturalista” onde a ênfase é concedida ao elemento cotidiano dos usos e costumes, da nossa tradição familiar, ou “da casa” na linguagem de DaMatta. O choque cultural acontece quando o indivíduo percebe a diferença existente entre “a casa” e “a rua”, entre a proteção e a liberdade de escolha, quando encara o fato de que o mercado é seletivo e exclusivo.

Este choque identificado por DaMatta está se evidenciando a cada dia, onde a segurança da casa não pode ser mais encontrada nas organizações formais. O

“turnover” que antes era de 20 anos, agora passou a ser de 3 anos. As pessoas não sabem se estarão empregadas amanhã, gerando uma insegurança acentuada. Desta forma somos levados a questionar se existe segurança em uma carreira focada em organizações formais?

2 – Existe segurança em uma carreira focada em organizações formais?

O processo acelerado de mudança está deixando seqüelas nos milhares de profissionais que foram treinados pela busca da segurança no emprego. Até a última década, as pessoas vestiam a camisa da empresa e mantinham a imagem da grande família, projetavam suas aspirações nas organizações e confiavam o futuro na figura da empresa. Sofrendo um processo de mutação, as organizações deixaram de ser paternalistas e se tornaram competitivas, pressionadas pelos acionistas e por metas agressivas.

Neste cenário, nosso herói Carlitos perde seu emprego, não faz parte daquela família acolhedora e superprotetora. A partir deste momento Carlitos não tem mais um sobrenome, perdeu sua identidade do dia para a noite. A falsa grande família corporativa fechou a porta na sua cara e não o quer de volta porque ele não serve mais, não tem o perfil da empresa mutante e sua idade já é avançada para os novos padrões ágeis impostos pelas mudanças. Na busca de um novo emprego Carlitos posta seu novo perfil no Linkedin, faz entrevistas online, envia mini CV, liga para todos seus conhecidos, mas descobre que agora sem sobrenome ele é mais um no meio da multidão de desempregados ou subempregados. As pessoas não recebem mais suas ligações, não respondem seus e-mails e não lhe dão atenção, logo ele que era um especialista e um profissional respeitado por todos. Sem ter emprego ele senta na calçada em frente ao Fórum de Justiça do Trabalho e chora. Chora a indignação de estar despreparado para o mercado de trabalho formal.

Em seu livro, O Horror Econômico, Viviane Forrester descreve bem a via crucia do desempregado, diz ela, “o desemprego invade hoje todos os níveis de todas as classes sociais, acarretando miséria, insegurança, sentimento de vergonha, em razão essencialmente dos descaminhos de uma sociedade que o considera uma exceção à regra geral estabelecida para sempre. Uma sociedade que pretende seguir seu caminho por uma via que não existe mais, em vez de procurar outras. (…) Resulta daí a marginalização impiedosa e passiva do número imenso, e constantemente ampliado, de ‘solicitantes de emprego que, ironia, pelo próprio fato de se terem tornado tais, atingiram uma norma contemporânea; norma que não é admitida como tal nem mesmo pelos excluídos do trabalho, a tal ponto que estes são os primeiros a se considerar incompatíveis com uma sociedade da qual eles são os produtos mais naturais. São levados a se considerar indignos dela e, sobretudo, responsáveis pela sua própria situação, que julgam degradante (já que degradada) e até censurável. Eles se acusam daquilo de que são vítimas. (…)

Partindo deste princípio que profetisa o fim do emprego nas organizações formais, gerando uma legião de desempregados fruto de uma sociedade globalizada, informatizada e dinâmica, algumas perguntas surgem:

  • Organizações formais ainda são uma opção inteligente no longo prazo?
  • Se não existe segurança nas organizações formais, por que os indivíduos se mantém fiéis a este modelo?  Será que estão repetindo um padrão de comportamento?
  • Será que as empresas, ao mexerem no pilar da segurança, podem gerar nos indivíduos a vontade de desenvolverem seus próprios negócios ao invés de ficarem à mercê das escolhas das organizações?

A partir da última pergunta construiremos outra ainda mais desafiadora.

3 – Será que o empreendedor é o personagem central desta nova sociedade?

De acordo com Joseph Schumpeter; “O empreendedor é aquele que destrói a ordem econômica existente pela introdução de novos produtos e serviços, pela criação de novas formas de organização ou pela exploração de novos recursos e materiais.” Desta forma o empreendedor é responsável pela criação de novos negócios, mas também pode inovar dentro de negócios já existentes; ou seja, é possível ser empreendedor dentro de empresas já constituídas. A figura do empreendedor vem substituir o empregado, a segurança dá lugar às incertezas oferecidas por um mercado dinâmico.

Talvez uma das principais características do empreendedor é a capacidade de projetar visões do mercado, identificando dentro deste cenário imaginário sua participação. Ver a frente do seu tempo e se posicionar para estar no lugar certo na hora certa é algo que diferencia um empreendedor das pessoas normais. De acordo com Lois Jacques Filion, “o empreendedor é uma pessoa que imagina, desenvolve e realiza visões”, para ele, a visão é uma imagem projetada no futuro do lugar que se quer ver ocupado pelos seus produtos no mercado, assim como a imagem projetada do tipo de organização necessária para consegui-lo.

Assim como projetar visões é fundamental em um mercado dinâmico, os desafios também afloram a criatividade. Não há criatividade sem um problema referente, assim como não há problema sem alguma solução. A busca por saídas é o grande estímulo às potencialidades humanas para a criação. Essencialmente a criatividade é uma função psicobiológica que todos possuem e que deve ser apenas reativada ou treinada. Para Abraham Maslow, psicólogo humanista, “O homem criativo não é o homem comum ao qual se acrescentou algo; o homem criativo é o homem comum do qual nada se tirou”. Existe, portanto, em cada adulto uma criança com imaginação esperando apenas a oportunidade para revelar-se.

O sentido empreendedor da criatividade está na validação do que se cria, ou seja, na resolução de problemas do mundo real. Os espaços abertos da criatividade são ilimitados e podem também gerar devaneios, que embora sejam ricos como exercícios mentais, não se apresentam como úteis no dia-a-dia das pessoas. A utilidade da criatividade empreendedora está na inovação e na geração de novos contextos nas diversas áreas das atividades humanas, tanto de tecnologia como de comportamento.

Esta busca por saídas criativas e pela identificação do novo cenário faz com que os empreendedores se adaptem melhor ao mercado que as pessoas focadas no emprego tradicional.

O quadro comparativo entre empregado e empreendedor demonstra com maior clareza estas características:

EMPREENDEDORSÍNDROME DO EMPREGADO
São visionários: Conseguem ver o futuro para seu negócio e sua vidaDependente: Necessita de alguém para se tornar produtivo, para trabalhar, precisa de supervisão;
Sabem explorar as oportunidades: Identificam mercados e criam produtos revolucionários que atendem o público consumidorTem visão restrita: Não busca conhecer o negócio como um todo: a cadeia produtiva, a dinâmica dos mercados, a evolução do setor;
São criativos: Criam novos produtos e serviços que ninguém nunca havia pensado antesPouco criativo: Não se preocupa com o que não existe ou não é feito, apenas procura entender o que já existe, se especializando e melhorando a idéia dos outros;
Sabem tomar decisões: Não se sentem inseguros para decidir, mesmo em momentos críticos;Pouco oportunista: Não se preocupa em transformar as necessidades dos clientes em produtos/serviços rentáveis;
São determinados e dinâmicos: Comprometidos com o que fazem, atropelam as adversidades. Mantêm-se dinâmicos e cultivam um certo inconformismo diante da rotina;Acomodado:  Não é pró-ativo, apenas reativo. Só percebe que está em perigo quando recebe a carta de demissão;
São apaixonados pelo que fazem: Adoram o trabalho que realizam, e é esse amor que leva o empreendedor ao sucesso;Medroso: Tem medo de errar, prefere participar de projetos com baixo risco e de preferência com algum supervisor com muita experiência de mercado;
Planejam Os empreendedores de sucesso tem em sua mão um Plano de Negócio;Estuda Pouco: Não se atualiza e fica obsoleto para o mercado de trabalho, sua única forma de reciclagem é quando a empresa fornece cursos que ela julga importantes para o empregado.
Assumem riscos calculados: O verdadeiro empreendedor é aquele que sabe gerenciar o risco, avaliando as reais chances de sucesso;Detestam tomar Decisões: Sentem-se ameaçados quando tem que tomar uma decisão e buscam a solução menos arriscada e que gera menor desgaste pessoal.
Cria valor para a sociedade: Geram empregos, dinamizam a economia, inovam e procuram melhorar a vida das pessoas através de seus produtos.Não Planejam: Vivem o aqui e agora, não estão pensando no futuro, apenas na próxima visita da alta gerência da empresa. Seu único planejamento é para atender a chefia no curto prazo.

Fonte: Gráfico adaptado do livro –  Oficina do Empreendedor

Para que este artigo não seja concluído apenas com dúvidas e questões abertas, fecho com uma posição otimista frente esta nova sociedade que surge. Acredito que a sociedade sem emprego, é na verdade, uma sociedade repleta de oportunidades para aqueles que estão preparados. O equivoco está na crença que a segurança habita o emprego, quando na verdade, está no vizinho chamado trabalho. A casa ao lado é prospera, mas os indivíduos insistem em bater na porta da mansão abandonada. No passado a mansão abrigava todo mundo, mas os tempos mudaram, o mundo mudou e a realidade é que a era do emprego está chegando ao fim. Este fenômeno foi potencializado com a pandemia onde as empresas tiveram que rever seus custos e estrutura. Nasce neste momento a era dos empreendedores, a era do ócio criativo e das profissões alternativas.

A fim de nos adaptarmos a esta realidade, teremos que responder estas e outras perguntas que nos levarão a mudar nossa forma de pensar e agir. Este movimento passa desde questões complexas como a criação dos nossos filhos, a educação que fornecemos e as atitudes a serem desenvolvidas a fim de criarmos agentes de mudança, e não, vítimas do mercado. Estas questões também nos levam a refletir sobre os caminhos a serem adotados em nossas carreiras e como nos direcionarmos para um mercado que não valoriza o empregado tradicional.

Por fim, estas questões nos preparam para o momento vivido por Chaplin no suposto filme, a hora que o executivo eficiente perde seu emprego e se encontra desempregado. Será que somos obrigados a aguardar este momento para que sepultemos o empregado que existe em cada um de nós a fim de dar a luz ao espírito empreendedor?

Sobre Glauco Cavalcanti: Autor do livro Empreendedorismo – Decolando para o Futuro. Sócio fundador da GC-5 Negotiaion Solutions. Eleito melhor professor de negociação no ranking nacional da FGV por 5 anos consecutivos. Possui PhD pela Florida Christian University, Mestrado em Gestão Empresarial pela FGV, MBA em Marketing pela FGV e curso de Negociação pela Harvard Law School.  

Referências Bibliográficas

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

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DA MATTA, Roberto. Relativisando: Uma Introdução à Antropologia Social, Petrópolis. Ed. Vozes, 4ª Ed., 1984.

DEGEN, R. O Empreendedor: fundamentos da iniciativa empresarial. São Paulo: McGraw-Hill, 1989

DE MASI, Domênico. Ócio Criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.

DOLABELA, Fernando. O Segredo de Luíza. São Paulo: Empório, 1999.

DOLABELA, Fernando.  Oficina do Empreendedor. São Paulo: Cultura.

FERRARO, Alceu R. Exclusão, Trabalho e Poder em Marx.  Pelotas, 1999.

FORRESTER, Viviane. O Horror Econômico. São Paulo: UNESP, 1997.

 

GENTILI, Pablo. (Org.). Globalização Excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. Petrópolis : Vozes, 1999.

NETO, Isaac Albagli. A Revolução do Espírito Empreendedor: o capital de risco na pequena empresa. Bureau Gráfica e Editora.

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