Notícia

Propriedade Intelectual e patente do medicamento contra hepatite C

Sem a patente, não há incentivos para que pesquisas continuem

Nas últimas semanas, uma notícia que já teria sido considerada fora de contexto em qualquer cenário ganhou contornos eleitorais. Trata-se da anulação de uma decisão do INPI que deferiu o pedido de patente do composto intermediário do medicamento Sofosbuvir, requisitado pela empresa americana GILEAD PHARMASSET LLC, que, em testes, provou curar a Hepatite C em 95% dos casos. Esta anulação foi decretada, em medida liminar, por um Juiz Federal do Distrito Federal, em ação popular proposta pela Candidata à Presidência da República Marina Silva (REDE), e seu Vice, Eduardo Jorge (PV).

Ávidos por ganhar pontos com seus eleitores, diversos políticos recorreram à mídia para criticar o ato administrativo do INPI. Conforme apurado pela Folha nesta matéria, manifestaram-se contra o deferimento do pedido de patente o candidato à presidência Guilherme Boulos (PSOL) e o senador José Serra (PSDB-SP). A Candidata Marina Silva (REDE) foi além e, juntamente com seu candidato à vice-presidência, ingressou com a Ação Popular, mencionada acima, requisitando (1) que o ato de concessão do INPI seja anulado, e (2) a autorização para que a Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ fabrique um genérico deste medicamento. Em uma decisão extremamente temerária que coloca a margem toda a legislação sobre o tema, ignorando por completo leis e tratados que o Brasil é signatário há décadas, o juiz federal da 21ª vara da Justiça Federal do Distrito Federal deferiu o primeiro pedido.

É preciso ter serenidade para analisar esta questão da maneira que ela deve ser encarada, de forma imparcial e livre de impulsos políticos e ideológicos. É natural que aqueles que não conheçam o tema da Propriedade Intelectual a fundo comemorem a decisão e até mesmo concordem com o posicionamento dos políticos mencionados. Contudo, convido o leitor a dar um passo para trás e entender o motivo pelo qual esta decisão, que nos termos técnicos corretos suspendeu os efeitos do ato de deferimento do pedido da patente por parte do INPI, na verdade, pode piorar o cenário geral da saúde no Brasil.

A inovação no mercado farmacêutico é responsável direta por questões comemoradas mundialmente no âmbito da saúde, como o aumento da expectativa de vida no Brasil (de 67 anos em 1995 para 75 anos em 2016, aproximadamente) e a queda da taxa de mortalidade infantil (41 bebês em 1995 para 13 em 2016, a cada mil nascidos vivos).[1]

Esta evolução ocorreu de modo gradual, no decorrer do desenvolvimento de novos medicamentos e novas vacinas. Um processo de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (P, D&I) nesta área demora em média entre 9 e 15 anos para ser finalizado, levando em consideração análise de diversos compostos, fases clínicas e aprovação, incluindo a devida revisão regulatória. São gastos, em média, da monta de 1 bilhão de dólares em pesquisa, mais de seis mil tentativas de desenvolvimento, mais de 400 pesquisadores, para se chegar a um remédio inovador.[2]

Não há como garantir que todo este investimento terá um resultado positivo ou economicamente rentável. Esta insegurança e risco são suplantados com o sistema de patentes. O direito de exclusividade garantido por uma patente representa a possibilidade de um retorno financeiro pelo esforço do desenvolvimento de uma nova droga, de modo que, sem a patente, sequer há incentivos para que estas pesquisas continuem – e, sem inovações, não haveria cura para doenças como a Hepatite C.[3]

Propriedade Intelectual: protegendo a saúde

As patentes são garantias legais construídas em um sistema internacional, que proporciona segurança jurídica para que inventores e empresas possam investir em um país. O Brasil é signatário da Convenção União de Paris, um acordo internacional que sedimenta bases da propriedade intelectual, entre eles direitos de se obter patentes, firmado em 1883, além de outro tratado internacional essencial denominado Acordo TRIPS (trade-related aspects of intelectual property rights). Já em âmbito nacional, há a própria Constituição Federal, que garante o direito fundamental do inventor de se obter uma patente, e, em sede infraconstitucional, a Lei de Propriedade Industrial (Lei n° 9.279/1996), que determina os critérios de patenteabilidade e todo o procedimento para se obter uma patente no Brasil.

Cumpre mencionar que patentes de medicamentos passaram a ser aceitas pelo Brasil a partir da Lei de Propriedade Industrial nº 9.279/96. A depender do tipo de patente, esta pode ter entre 15 ou 20 anos de proteção de direito exclusivo, ou seja, somente a empresa que detém a patente no país poderá comercializar o objeto da mesma – e ainda o seu prazo de proteção é partir do depósito do pedido de patente no INPI, o que diminui significativamente o tempo efetivo de proteção da respectiva patente entre  5 e 11 anos de exclusividade aproximadamente. No entanto, tal qual qualquer outro bem, a patente é um bem intangível que a empresa poderá negociar a sua comercialização com interessados – inclusive o Estado. No caso específico da patente da vacina da Hepatite C, a Gilead informou por meio de um comunicado que entrou em fase de negociações com o Ministério da Saúde para que um tratamento para a Hepatite C seja disponibilizado à população brasileira. Cabe à população cobrar ao Estado que esta negociação seja feita.

Após o término do prazo de exclusividade de uma patente, o seu objeto passa a poder ser explorado por terceiros livremente sem qualquer tipo de sanção, é o que se chama na literatura especializada de “domínio público”. A partir, daí o medicamento inovador passa a ter outras versões, conhecidos pela alcunha de “medicamentos genéricos”. Ou seja, a própria existência de medicamentos genéricos depende, então, da fase anterior de inovação, do investimento de capital e de pessoal qualificado empreendido na criação de uma droga inovadora. Sem o medicamento inovador ou “de referência” não há o que se falar do medicamento genérico.

Ademais, as leis relacionadas acima são muito mais importantes do que aparentam. Elas garantem proteção jurídica a qualquer inventor, nacional ou estrangeiro, que queira investir no Brasil. Qualquer sinal grave de abalo a estas fundações legais pode refletir negativamente na economia do país, com consequências que variam entre queda do valor de empresas em bolsas de valores, fuga de capital e investimentos, cancelamento de pesquisas, perda de cientistas em instituições nacionais ou mesmo a decisão de não lançar determinado medicamento inovador no país. Uma situação instável arrisca, assim, empregos de empresas que resolvem abandonar o Brasil e vidas que poderiam ser salvas por medicamentos e/ou vacinas que não chegaram à fase final de pesquisa e desenvolvimento ou aqui não são comercializadas.

A decisão liminar obtida por Marina Silva, que está em paralelo com visões de Guilherme Boulos e José Serra, é um destes possíveis sinais de abalo. Afinal de contas, se o Brasil não é um país que honra suas tradições internacionais, suas próprias leis nacionais, por que empresas deveriam arriscar seus investimentos aqui? Este risco sempre é sopesado por empresas, e quem sofre as consequências são os brasileiros.

O INPI constitui uma Autarquia Federal independente constituída especificamente para analisar pedidos de registros de ativos de propriedade industrial. Esta é sua finalidade principal, acima de qualquer outra, e, para tanto, instituiu-se um procedimento em obediência à lei que deve ser sempre seguido. Assim, qualquer insinuação de intervenção de outro órgão do poder público (como as alegações de este ser subordinado ao Ministério da Industria, Comércio Exterior e Serviços) ignora sumariamente os princípios máximos da autonomia e da legalidade, além de desconsiderar que o INPI possui corpo técnico especializado com elevadíssimo conhecimento  técnico sobre patentes, que deve ser respeitado, salvo evidente erro técnico, que poderá ser questionado nas vias judicias por qualquer terceiro interessado e a qualquer momento. Por óbvio, erros de exame acontecem, mas eles devem enfrentar o rito de questionamento próprio, que não é aquele proposto por Marina Silva e Eduardo Jorge. A atitude desta chapa à presidência, visivelmente apoiada por partidos que disputam o mesmo cargo, ameaça toda a economia que a mesma pretende proteger.

São momentos como estes que causam grande insegurança jurídica a potenciais investidores no Brasil. As consequências já são sentidas há tempos, como queda do número de depósitos de pedidos de patentes no Brasil, indicando falta de interesses em investimentos no país. Esta situação não é sensível e sentida diretamente pela população, mas sim efetivamente, como na falta de medicamentos inovadores nas prateleiras.

Aos candidatos, tanto aqueles nomeados neste artigo quanto aos demais, lanço um desafio: ao invés de adotar posicionamentos visivelmente políticos e desfavoráveis aos investimentos no Brasil, invista em seus cidadãos, na educação básica, na pesquisa e no desenvolvimento, criando ambientes favoráveis para tal. Se gostaria que a patente da cura da hepatite C fosse de origem brasileira, dê condições a seus pesquisadores e respectivos institutos para que o resultado seja atingido ao invés de defender a hipotética fabricação local de um medicamento que está protegido pela tutela da patente.

Enquanto isto não ocorrer, a solução não é requerer a licença compulsória da patente, ou vulgarmente falando pedir a “quebra da patente”, que é fator de extrema excepcionalidade previsto em lei, mas sim licenciá-la em uma negociação regular e transparente entre empresa e Estado, agindo este último como mero negociante interessado no mercado. É preciso ter respeito ao INPI e às instituições brasileiras, pois na guerra da eleição presidencial de 2018, quem saiu perdendo na batalha da Propriedade Intelectual foi a população.

 

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[1] Dados da INTERFARMA, em apresentação de agosto de 2018.

[2] idem

[3] idem

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