Por: Eriça Tomimaru e Felipe Oquendo
Devido ao avanço biotecnológico, em especial para suprir a demanda de consumo de alimentos mundial, verificou-se a necessidade da proteção dos direitos de propriedade intelectual decorrentes da inovação produzida nesse segmento, e, especial ao desenvolvimento de novas variedades de plantas, também conhecida como cultivares[1].
Em decorrência do interesse de se tornar membro da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Brasil ratificou o Acordo Constitutivo da referida organização, do qual faz parte o Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPs), através do Decreto nº 1.355/94, que entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1995.
O TRIPs é um tratado internacional que estabelece padrões e princípios adequados relativos à existência, abrangência e exercício de direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, dentre os quais encontra-se a proteção dos direitos relativos às cultivares[2].
Em razão de a Lei da Propriedade Industrial (LPI – Lei nº 9.279/1996) estabelecer que as variedades vegetais “per se” não são passíveis de proteção por patentes[3], o Brasil promulgou a primeira legislação que garantiu os direitos dos obtentores de variedades vegetais, através da Lei nº 9.456/1997 (Lei de Proteção de Cultivares – LPC), regulamentada pelo Decreto nº 2.366/1997 (Regulamento de Proteção de Cultivares – RPC), exigência prévia para a entrada do país na Convenção da União Internacional para a Proteção de Obtenções Vegetais (UPOV).
Ao aderir à UPOV, o governo brasileiro buscava obter a garantia de que os direitos dos obtentores de novas cultivares fossem respeitados pelos demais países que tenham aderido ao acordo, pelo fato de o Brasil se destacar no cenário agrícola internacional por ser um dos maiores produtores e exportadores de grãos do mundo. Tanto que o Brasil é atualmente o 11º país com maior número de cultivares depositadas no mundo[4].
De acordo com a Lei de Proteção de Cultivares, o titular do certificado de proteção de cultivar não só possui direitos positivos (como os de vender, oferecer à venda, reproduzir, importar etc.), como também o direito negativo de excluir terceiros da produção com fins comerciais, bem como do oferecimento à venda ou comercialização efetiva da cultivar protegida[5].
Ainda, a LPC estabelece as seguintes hipóteses de exceção do direito de propriedade sobre a cultivar: i) o agricultor pode reservar e plantar sementes para uso próprio, desde que seja em sua propriedade ou de local que detenha posse; ii) o agricultor pode usar ou vender como alimento ou matéria-prima o produto obtido do seu plantio, exceto para fins reprodutivos; iii) a utilização da cultivar como fonte de variação no melhoramento genético ou na pesquisa científica; iv) o pequeno agricultor pode multiplicar sementes para doação ou troca, desde que seja para ser negociado entre outros pequenos produtores rurais, no âmbito de programas de financiamento ou de apoio a pequenos produtores rurais, conduzidos por órgãos públicos ou organizações não-governamentais, autorizados pelo Poder Público (art. 10).
Portanto, terceiros não autorizados estão sujeitos ao pagamento de indenização e de multa equivalente a vinte por cento do valor comercial do material apreendido, além de estarem sujeitos a outras sanções de caráter civil e penal[6].
Entretanto, diferentemente da Lei da Propriedade Industrial, o Regulamento de Proteção de Cultivares deixou de estabelecer critérios claros e objetivos para a indenização em casos de violação de cultivar, apesar da previsão na Lei de Proteção de Cultivares.
O artigo 37 da Lei de Proteção de Cultivares, repetido no artigo 33 do Decreto nº 2.366/97, prevê apenas a aplicação de uma multa de 20% (vinte por cento) sobre o valor das unidades vegetais apreendidas, sem, contudo, determinar os parâmetros de indenização pelas perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação da cultivar.
Sobre os diplomas acima citados, o saudoso professor Denis Barbosa afirma que a lei, na realidade, prevê uma remuneração ao obtentor e, não, um parâmetro para indenização. Dessa forma, ante à lacuna na referida legislação, o doutrinador entende que devem ser aplicados os critérios estabelecidos na Lei da Propriedade Industrial, a saber:
“A legislação de cultivares (Lei no 9. 456, de 1997) é ainda mais imperfeita neste contexto:
Art. 37. Aquele que vender, oferecer à venda, reproduzir, importar, exportar, bem como embalar ou armazenar para esses fins, ou ceder a qualquer título, material de propagação de cultivar protegida, com denominação correta ou com outra, sem autorização do titular, fica obrigado a indenizá-lo, em valores a serem determinados em regulamento, além de ter o material apreendido (…)
O que já nos fez comentar:
O regulamento não determinará, certamente, a indenização; poderá, talvez, indicar certos parâmetros. Mas ainda assim, por adentrar em matéria cível ou de processo, nem mesmo isto fará, ou, fazendo-o, estará sujeito à óbvia comparação com os parâmetros de constitucionalidade.
O regulamento, Decreto No 2. 366, de 5 de Novembro de 1997, parece apontar para uma remuneração e não uma indenização:
Art. 33. Para os efeitos da indenização prevista no art. 37 da Lei no 9. 456, de 1997, a remuneração do titular será calculada com base nos preços de mercado para a espécie, praticados à época da constatação da infração, sem prejuízo dos acréscimos legais cabíveis.”[7]
Em complemento ao seu raciocínio, o doutrinador entende que parece ser razoável aplicar os parâmetros previstos no art. 210 da LPI para evitar o enriquecimento sem causa, seja do obtentor, seja do infrator[8].
Outro problema enfrentado pelos obtentores é ausência de previsão legal quanto ao prazo prescricional para a reparação de danos pelo uso indevido de cultivares, acarretando uma discussão se o prazo seria de 3 anos (pelo artigo 206, §3º, inciso V do Código Civil), de 5 anos (por regência supletiva do artigo 225 da Lei da Propriedade Industrial) ou 10 anos (prazo prescricional comum quando ausente a previsão legal expressa, conforme definido pelo artigo 205 do Código Civil).
Julgado recente do Superior Tribunal de Justiça, porém, parece ter lançado alguma luz sobre essa matéria, na medida em que estabeleceu a premissa de que a regência suplementar da Lei de Proteção de Cultivares é o Código Civil (RESP nº 1.837.219 – SP).
No julgamento do referido recurso, o STJ afastou a aplicação do prazo decenal previsto no artigo 205, em razão de seu cabimento ser possível apenas na hipótese de o Código Civil não prever uma disciplina específica. Ainda, definiu que o prazo prescricional seria quinquenal no caso de cobrança de royalties supostamente devidos a título de contrato de licença, conforme previsto no artigo 206, parágrafo 5º, I, do Código Civil[9], em razão da possibilidade de se apurar o valor devido através de cálculos aritméticos. Em outras palavras, o STJ entendeu que se trata de dívida líquida constante de instrumento contratual, apesar de sua apuração ocorrer apenas em fase de liquidação de sentença.
Ainda que o caso versasse sobre pagamento de royalties e não de indenização por dano extracontratual, o ponto de interesse é que o STJ determinou a aplicação supletiva do Código Civil ao caso.
Lamentavelmente para os obtentores de cultivares, o recurso especial não chegou a discutir abertamente se a legislação supletiva da Lei de Proteção de Cultivares seria o Código Civil ou a Lei da Propriedade Industrial, mas sim, apenas, qual dispositivo do Código Civil seria aplicável ao caso. Dessa forma, a aplicação do Código Civil se deu de forma não dialética à LPI, até mesmo porque esta não regula expressamente prazos prescricionais para cobrança de royalties contratualmente estabelecidos.
Não obstante não ter resolvido a questão, trata-se de importante precedente pois, até onde foi nossa pesquisa, esta é a primeira vez que o STJ define a suplência de um ponto da Lei de Proteção a Cultivares.
Caso o STJ venha a manter esse entendimento numa discussão específica de reparação civil por danos extracontratuais, o limite prescricional em uma ação de reparação de danos decorrente de infração de cultivares seria de 3 anos, conforme dispõe o art. 206, parágrafo 3º, inciso V do Código Civil[10] e não de 5 anos, como disposto pelo artigo 225 da LPI.
De toda sorte, por se tratar de uma violação contínua, não há espaço para dúvida razoável de que o termo a quo nasce a cada dia em que o direito é violado e, por conseguinte, a prescrição passa a ser contada do último ato de infração, disciplina geral aplicável à infração de qualquer direito de propriedade intelectual.
[1] A proteção para as cultivares tem como objetivo defender os interesses de seus obtentores, bem como incentivar o desenvolvimento de novas variedades de plantas a serem cultivadas na agricultura, horticultura e silvicultura.
[2] ARTIGO 27
Matéria Patenteável
3 – Os Membros também podem considerar como não patenteáveis:
[…]
b) plantas e animais, exceto microorganismos e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não biológicos e microbiológicos.
Não obstante, os Membros concederão proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um sistema “sui generis” eficaz, seja por uma combinação de ambos. O disposto neste subparágrafo será revisto quatro anos após a entrada em vigor do Acordo Constitutivo da OMC. (grifou-se)
[3] Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade:
[…]
IX – o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais.
[4] Disponível em: https://www.statista.com/statistics/257559/ranking-of-the-20-countries-with-the-most-plant-variety-applications/.
[5] Art. 9º A proteção assegura a seu titular o direito à reprodução comercial no território brasileiro, ficando vedados a terceiros, durante o prazo de proteção, a produção com fins comerciais, o oferecimento à venda ou a comercialização, do material de propagação da cultivar, sem sua autorização.
[6] Art. 37. Aquele que vender, oferecer à venda, reproduzir, importar, exportar, bem como embalar ou armazenar para esses fins, ou ceder a qualquer título, material de propagação de cultivar protegida, com denominação correta ou com outra, sem autorização do titular, fica obrigado a indenizá-lo, em valores a serem determinados em regulamento, além de ter o material apreendido, assim como pagará multa equivalente a vinte por cento do valor comercial do material apreendido, incorrendo, ainda, em crime de violação dos direitos do melhorista, sem prejuízo das demais sanções penais cabíveis.
[7] Disponível em: denisbarbosa.addr.com/53.doc. Acesso em 22/09/21.
[8] Tal método trinitário estabelece uma regra de indenização compreendendo tanto o danum emergens (as perdas sofridas) quanto o damnum cessans (inciso I), um critério de enriquecimento sem causa – enriquecimento positivo ou negativo (o item II) e o critério suplementar de um hipotético ganho resultante do jus fruendi.
[…]
Assim, salvo disposição especial (e o art. 210 da Lei 9.279/96 o é) são esses os limites e diretrizes para a recomposição patrimonial do ato ilícito. Antes de tudo, há que se distinguir entre os danos emergentes e os lucros cessantes. Esses, sempre razoáveis. A violação pode causar lesão imediata, com perda patrimonial instantânea. A doutrina e a jurisprudência apontam como exemplos dessa natureza os custos pata determinar qual o violador e o alcance da violação, os gastos de publicidade para informar o público da existência da violação e os cuidados para evitá-la, e a respectiva informação direta à clientela habitual.” (BARBOSA, Denis B.; Wachowicz, Marcos (org). Propriedade intelectual: desenvolvimento na agricultura. Curitiba: GEDAI/UFPR, 2016.
[9] Art. 206. Prescreve:
[…]
§5º Em cinco anos:
I – a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular;
[10] Art. 206. Prescreve:
§ 3 o Em três anos:
[…]
V – a pretensão de reparação civil;