Tomamos conhecimento de que o Twitter havia apagado duas publicações do Presidente Jair Bolsonaro devido a seu conteúdo. Em síntese, alegou o Twitter que o conteúdo era ofensivo à saúde pública pois, de certo modo, o presidente da república induzia as pessoas a saírem de suas casas, afrontando as recomendações de órgãos públicos nacionais e internacionais a respeito da necessidade de isolamento para fazer frente ao Covid-19.
Em nota, o Twitter declarou: “O Twitter anunciou recentemente em todo o mundo a expansão de suas regras para abranger conteúdos que forem eventualmente contra informações de saúde pública orientadas por fontes oficiais e possam colocar as pessoas em maior risco de transmitir COVID-19”[1].
Vale apontar que o Twitter cancelou, além de postagens do presidente do Brasil, um tuíte de Maduro, presidente da Venezuela. O motivo do apagamento do post é parecido. Maduro recomendava, de sua conta no Twitter, um antídoto contra o vírus.
O Marco Civil da Internet – Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 – estabelece no art. 7º que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, sendo que no art. 8º consta: “A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet”. Sem dúvidas, o presidente da república goza desse direito assim como outro qualquer cidadão brasileiro. E mais: como líder máximo da Nação deve ele se portar à altura do cargo, pois a conta pessoal do Twitter do cidadão Jair Bolsonaro se confunde com o cargo de Presidente da República a depender do conteúdo do que publica.
É como se, em detrimento do cargo que ocupa, a esfera pública assumisse novos contornos frente aos direitos de privacidade e intimidade do indivíduo. O homem público deve estar ciente de sua função, agindo com responsabilidade, também, na forma como se expressa nas redes sociais.
Para o administrativista Celso Antonio Bandeira de Mello (2015:252): “Agentes políticos são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou seja, são os ocupantes dos cargos que compõem o arcabouço constitucional do Estado e, portanto, o esquema fundamental do poder. Sua função é a de formadores da vontade superior do Estado”.
Na Era da Informação, o que se publica tem efeitos reais na vida privada e profissional. No entanto, publicações nas redes sociais realizadas pelo chefe do poder executivo federal de qualquer país ganham notoriedade pois não atingem apenas seus seguidores, mas atingem a todos, interferindo sobremaneira naquilo que no direito chamamos de interesse público. É bom recordar que se trata de um princípio informador do direito administrativo: a supremacia do interesse público em detrimento do privado. Assim, os direitos e deveres de quem exerce função pública são diferentes daqueles que não possuem esta condição.
A postagem do Presidente da República, ainda que através de sua rede particular, pode ter gerado confusão, comoção nacional e certamente impactos principalmente considerando o momento de excepcionalidade desta pandemia. Da mesma maneira, o presidente dos EUA se utiliza de sua conta pessoal no Twitter para fazer declarações de caráter público. É como se este tipo de liderança governasse por tweets, o verdadeiro canal de comunicação entre governantes e governados.
O certo é que a população precisa receber do poder público informações claras, exatas e uníssonas, não sendo razoável que esta sociedade receba este tipo de informação, ou seja, um vídeo do presidente da república visitando comerciantes, pois tal mensagem assemelha-se à uma guerra de informações e contrainformações, embaralhando a percepção das pessoas do que se deve fazer neste momento. Ademais, diante destas postagens torna-se impossível sabermos ao certo qual é a “vontade superior” de quem lidera o país.
A internet pode ser imaginada como uma rua. Nela, pode haver interações saudáveis, comércio, compartilhamento de experiência, de saberes, etc. E pode haver práticas abusivas, ilícitas ou simplesmente inadequadas para a vida em sociedade. Sim, temos uma sociedade civil digital que precisa ter regras claras.
É nesta seara que as políticas de segurança da informação, de termos de uso, de privacidade publicadas pelas redes sociais ganham relevância e vêm ao encontro da necessidade de melhorarmos a governança global nas redes sociais. É importante notar que ganham relevância pública pois nos afetam como sociedade digital que está cada dia mais conectada.
O que não pode haver nestes tempos incertos e pouco previsíveis para todos é uma publicação do líder máximo do país que acarrete desinformação e coloque em xeque informações advindas de órgãos técnicos de ministérios, fundações de saúde e OMS – Organização Mundial de Saúde.
O direito à liberdade de expressão e opinião, bem como o direito ao acesso à internet e à privacidade do presidente da república não pode abalar os alicerces da saúde pública e do próprio interesse público.
O vírus que nos ronda não reconhece fronteiras e nos invade de forma avassaladora. Já é hora de o Brasil aprender com as experiências chinesa e italiana para enfrentarmos esta pandemia da melhor forma possível. A internet e o bom uso que podemos fazer dela é a ferramenta contra o mal da ignorância e da desinformação.
Por Marília Baracat
Head de Privacidade e Proteção de Dados
[1] Após a decisão do Twitter, outras redes sociais passaram a excluir publicações do presidente Jair Bolsonaro citando riscos à saúde pública. Facebook e Instagram removeram (30/03/2020) publicações de Bolsonaro no entendimento de que estas causavam desinformação e poderiam causar danos reais às pessoas.
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