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O novo marco legal do mercado de cambio brasileiro e as suas repercussões sobre as remessas de royalties ao exterior

Por: Hannah Fernandes – advogada especialista em Direito Corporativo, diretora jurídica da ABF Rio, diretora da LES Brasil e membro da Comissão Especial de Franquias da OAB Nacional

Em 30 de dezembro de 2021, foi publicada a Lei 14.286/2021, que já é considerada como o novo Marco Legal do Mercado de Câmbio e dos Capitais Internacionais, tendo em vista as significativas alterações que serão implementadas aos contratos comerciais e operações de câmbio nacionais, a partir da sua vigência.

O texto do Projeto de Lei (Projeto nº 5.387/19) foi objeto de sanção presidencial sem vetos, sendo desenvolvido dentro da agenda do Banco Central do Brasil, que tem como principal objetivo modernizar a legislação do mercado de câmbio brasileiro, que hoje está definida de maneira esparsa e pulverizada em leis diversas, que datam do início do século XX. A variedade das legislações aplicadas ao tema sempre trouxe muita complexidade às operações de remessa de divisas de entidades brasileiras ao exterior, trazendo histórica ineficiência e complexidade às operações de câmbio. Nesse contexto, o objetivo da nova lei é modernizar e simplificar as operações de câmbio brasileiras, em maior proximidade com o que é aplicado internacionalmente, compilando em um só diploma as principais regras aplicáveis à matéria. 

A Lei 14.286/2021 entrará em vigor a partir de 30 de dezembro de 2022, dispondo novas regras acerca do mercado de câmbio brasileiro, o capital brasileiro no exterior, o capital estrangeiro no país e a prestação de informações ao Banco Central do Brasil, para fins de compilação de estatísticas macroeconômicas oficiais (vide art. 1º).

Ainda que haja temas na lei sujeitos à posterior regulação pelo Banco Central do Brasil (Bacen) e pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), a lei traz consigo como principais pontos disposições sobre o mercado de câmbio, ainda sobre o capital brasileiro no exterior e do capital estrangeiro no país, bem como das informações para a compilação de estatísticas macroeconômicas oficiais pelo Bacen, além das disposições gerais.

Partindo para uma análise detalhada da lei, podemos extrair inovações que importam diretamente às transações envolvendo bens de propriedade industrial – marcas, patentes, desenhos industriais, serviços de assistência técnica, know-how e franquias empresariais – e as consequentes remessas de royalties ao exterior, conforme detalhado a seguir.

Conforme redação trazida pelo art. 2º da lei, as operações de câmbio poderão ser realizadas de forma livre sem restrição em relação ao valor. Ou seja, no mesmo passo das regras internacionais, as limitações de remessa de pagamentos ao exterior atualmente aplicáveis aos contratos de transferência de tecnologia, deixarão de viger no território nacional.

Historicamente, a legislação brasileira não permitia a celebração de contratos entre partes relacionadas, tal como matriz e subsidiária, prevendo remessa de royalties do Brasil ao exterior por uso de bens de propriedade industrial. Caso tais contratos fossem celebrados, era obrigatório que fossem gratuitos. Como justificativa, havia a proteção da indústria nacional e o controle de remessas de divisas por subsidiárias brasileiras às suas controladoras localizadas no exterior. 

A partir da publicação da Lei 8.383/1991, editada para alterar a legislação do Imposto de Renda, houve uma significativa mudança no cenário legislativo relacionado ao tema, tendo em vista a autorização expressa para remessa de royalties em contratos celebrados entre matriz e subsidiária, desde que tais remessas fossem limitadas aos percentuais máximos de dedutibilidade fiscal de royalties, pela exploração de marcas e patentes, de assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante. O grande problema é que os coeficientes percentuais máximos para as mencionadas deduções variam de 1% até 5% apenas, considerados os tipos de produção ou atividade, segundo o grau de essencialidade, definidos na Portaria 436/1958 do Ministério da Fazenda, para entidades que tributam pelo regime do lucro real. Na grande maioria dos casos, portanto, os percentuais máximos não atendiam às expectativas remuneratórias das partes que, em alguns casos, chegam a ser irrisórias. Por exemplo, contratos de licença de uso de marcas celebrados entre partes relacionadas, estão limitados à remuneração máxima de 1% sobre a receita dos produtos contratuais.

Adicionalmente, deve ser ressaltado que tais limitações também causavam um grande número de problemas fiscais internacionais, visto que as regras de preço de transferência brasileiras – com a fixação de limite máximo de remuneração atrelado aos percentuais de limites fiscais – são totalmente diferentes e causam enorme estranhamento em jurisdições que aplicam os Princípios da Plena Concorrência (“Arm’s Length Principle” e “The Best Method Rule”), tal como a jurisdição dos Estados Unidos, por exemplo. 

As regras de limite remuneratório descritas acima estarão em vigor até a entrada em vigência da Lei 14.286/2021, em 30 de dezembro de 2022. Após essa data, e ainda que faltem diretrizes estabelecidas pelo CMN e o regulamento a ser editado pelo Banco Central do Brasil, as partes contratuais envolvidas em transações anteriormente limitadas estarão livres para negociar os percentuais de royalties, devendo justificar os preços contratuais pelas regras de preço de transferência aplicadas por todos os países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Talvez não por acaso que, em 25 de janeiro de 2022, o Conselho da OCDE decidiu iniciar discussões sobre o pedido de adesão feito pelo Brasil em 1994. É sabido que as práticas limitantes brasileiras sobre o tema de preço de transferência sempre foram uma grande barreira à efetiva adesão do país ao grupo, tendo conseguido, no máximo, tornar-se um parceiro-chave da organização em 2007. Em todo caso, cabe aqui esclarecer que as transações internacionais envolvendo bens intangíveis de propriedade intelectual ainda permanecem condicionadas à averbação prévia no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).

Outro ponto que merece destaque no texto da Lei 14.286/2021 é a dispensa de registro prévio de contratos onerosos sobre bens de propriedade industrial junto ao Bacen. Nesse sentido, deve ser destacado que tais operações de câmbio poderão apenas ser executadas por intermédio de instituições autorizadas pelo Bacen (Art. 3º); ainda a instituição autorizada será responsável pela identificação e pela qualificação de seus clientes e por assegurar o processamento lícito de operações no mercado de câmbio (Art. 4º). A lei ainda dispõe sobre as competências do Banco Central (Art. 5º).

O dispositivo legal ainda estabelece que ao capital estrangeiro no Brasil será dispensado tratamento jurídico idêntico ao concedido ao capital nacional em igualdade de condições. (Art. 9º). Competindo ao Bacen monitorar, regulamentar fluxos e estoques, bem como estabelecer procedimentos para as remessas e, ainda, requisitar informações sobre os capitais brasileiros no exterior e os capitais estrangeiros no Brasil.

A legislação busca desburocratizar os processos cambiais, abrindo possibilidade para que outras instituições além dos bancos e corretoras possam realizar transações com moeda estrangeira. Ainda viabiliza que um investidor estrangeiro possa abrir uma conta no Brasil em moeda estrangeira.

A lei também altera o art. 50 da Lei nº 8.383, de 30 de dezembro de 1991,  o qual passa a viger com a seguinte redação:

Art. 50. As despesas referidas na alínea “b” do parágrafo único do art. 52 e no item 2 da alínea “e” do parágrafo único do art. 71 da Lei nº 4.506, de 30 de novembro de 1964, decorrentes de contratos que, posteriormente a 31 de dezembro de 1991, sejam assinados e averbados no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), passam a ser dedutíveis para fins de apuração do lucro real, observados os limites e as condições estabelecidos pela legislação

Para melhor elucidar o tema, cabe explicar que os valores pagos a pessoas jurídicas ou naturais domiciliadas no exterior a título de assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante, quer fixas quer como percentagens da receita ou do lucro, não eram dedutíveis quando pagas ou creditadas pela sociedade com sede no Brasil à pessoa domiciliada no exterior que mantenha, direta ou indiretamente, o controle de seu capital com direito a voto.

No mesmo sentido, a dedução de despesas com aluguéis ou royalties para efeito de apuração de rendimento líquido ou do lucro real sujeito ao imposto de renda, não ocorrerá quando os royalties forem pelo uso de patentes de invenção, processos e fórmulas de fabricação ou pelo uso de marcas de indústria ou de comércio, quando estes forem pagos pela sociedade com sede no Brasil a pessoa com domicílio no exterior que mantenha, direta ou indiretamente, controle do seu capital com direito a voto.

                Nessas duas hipóteses, portanto, a lei realiza alteração sendo que as despesas passam a ser dedutíveis. Assim, mesmo quando pagas pelas sociedades com sede no Brasil a favor de sócio com domicílio no exterior que mantenha, direta ou indiretamente, controle do seu capital com direito a voto, passarão a ser dedutíveis. A dedução com objetivo fiscal já ocorria nas demais hipóteses, passando a valer a partir do sancionamento da nova lei, para os casos do art. 52, dado que antes eram vedados qualquer tipo de dedução[1].

A legislação ainda dispõe que as remessas para o exterior a título de lucros, dividendos, juros, amortizações, royalties, assistência técnica científica, administrativa e semelhantes dependam de prova do pagamento do imposto sobre a renda devido, se for o caso, por meio de alteração do art. 9º da Lei nº 4.131/62.

Portanto, foram muitos os ganhos em simplificação e desburocratização trazidos pela Lei 14.286/2021, que terá o mérito de, no futuro, ser considerada não só um Marco Legal, mas também um marco evolutivo de práticas cambiais que já não mais serviam aos interesses de desenvolvimento econômico do Brasil.


[1] art. 52, parágrafo único, alínea b e art. 71, parágrafo único, alínea “e”, item 2 da Lei 4.506/64

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