presenciamos recentemente alguns casos de escândalos, que vieram à tona na mídia, envolvendo pessoas públicas e influentes na sociedade brasileira. Essas pessoas atraem holofotes e atenção de inúmeros autores e diretores do mercado cinematográfico, que buscam histórias sui generis para serem enredo de obras biográficas literárias e audiovisuais. Contudo, posteriormente, muitas dessas histórias acabam tendo deslindes surpreendentes e se revelam absolutamente discrepantes com relação às versões contadas, à época, sob o prisma de seus protagonistas, gerando um impacto na opinião pública por serem socialmente reprováveis. Podemos citar como exemplo o famoso caso do médium João de Deus, que foi retratado em diversos filmes e biografias e cuja história de vida teve reviravoltas e revelações chocantes recentemente.
Em casos como esse, poderiam os diretores de obras audiovisuais, que tiveram como enredo histórias com revelações de vida abruptas e chocantes, exigir a retirada de circulação de suas obras por entenderem que isso poderia afetar sua reputação ou por se sentirem enganados e traídos após a revelação posterior da verdade?
Cumpre destacar que os Direitos Morais de Autor estão intrinsecamente ligados à sua pessoalidade e estão definidos no art. 24 da Lei 9.610/98 – Lei de Direitos Autorais. Dentre eles, destaca-se o direito de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem, como previsto no inciso VI do referido artigo.
No caso de obras audiovisuais, a LDA dispõe que são coautores: o autor do assunto ou do argumento literário, musical ou lítero musical e o diretor, contudo, cabe somente ao diretor o exercício dos direitos morais de autor, dentre os quais inclui-se o direito de retirada de circulação e/ou suspensão de utilização já autorizada.
Ou seja, caso a circulação de determinada obra audiovisual acarrete possível afronta à reputação e imagem de seu diretor, ele, e somente ele, te- ria legitimidade para requerer a sua retirada de circulação. Todavia, caso entenda-se que isso não seja possível por questões contratuais e/ou quaisquer implicações, como a previsão de multa por descumprimento de contrato, há a possibilidade de modificação da obra, antes ou depois de utilizada, conforme disposto no inciso V do art. 24 da Lei de Direitos Autorais.
Além disso, ressalta-se a peculiar situação das obras realizadas em regime de coautoria. Pode- ria um dos coautores, sem a autorização dos de mais, retirar de circulação obra que considere poder macular sua reputação, honra e imagem?
Nesse sentido, de acordo com a interpretação do art.32, caput e § 1º, da LDA, havendo divergência (em caso de obra indivisível criada em regime de coautoria), os coautores decidirão por maioria. Nesse caso, ocorreria uma comunhão de direitos que corresponderia ao disposto em um condo- mínio comum, ou seja, cada autor teria direito a uma parte ideal no conjunto.1
Ainda, insta ressaltar que nos casos de obras audiovisuais do gênero documentário, por exemplo, a decisão de não publicação/divulgação pode encontrar óbice na questão do interesse público de acesso à informação pela sociedade. Haveria, nesse caso, um claro confronto de direitos, a ver: o direito moral de autor do diretor e seus direitos personalíssimos de reputação e imagem versus liberdade de expressão e o interesse da sociedade no acesso à informação consubstanciada no conteúdo do documentário.
Um caso famoso envolvendo o direito de retira- da de circulação de obra audiovisual, motivado por outras circunstâncias, diz respeito à apresentadora Xuxa Meneghel que, no início de sua carreira, participou do longa metragem “Amor, Estranho Amor”, dirigido pelo cineasta Walter Khouri. Nesse caso, a obra realizada no passado foi considerada por ela, posteriormente, como não condizente com o seu público atual (majoritariamente infantil), razão pela qual Xuxa demonstrou o
seu arrependimento e desejo de que o mesmo não fosse mais exibido/veiculado pois estaria gerando enormes prejuízos para sua carreira em decorrência de comentários maldosos realizados pelo público. Nesse caso, ela conseguiu bloquear a exibição da obra audiovisual, que saiu de circulação no ano de 1992, através de uma ação judicial e posterior acordo, prevendo uma remuneração em contrapartida. No ano de 2018, o acordo foi extinto por iniciativa da própria Xuxa e, a partir daí, o filme já estava livre para ser novamente veiculado e comercializado no mercado.
Retomando a discussão sobre o direito do autor de retirada de circulação de uma obra, em casos polêmicos, como esse do médium João de Deus, em que os seus autores/diretores, quando da criação de suas obras, não tinham conhecimento da realidade e trabalharam com os fatos que apuraram à época. João de Deus era um médium extremamente respeitado e venerado, responsável pela criação de um enorme templo na cidade de Abadiânia, no interior do estado de Goiás. Sua história virou um filme lançado em 2017: “João de Deus – O Silêncio é uma Prece”, que mostrou o dia a dia das atividades do médium no local e sua relação com os seus visitantes. Atualmente, após chocantes e inúmeras revelações de mulheres que acusam o médium de abuso sexual, foi lançado um novo documentário: “Em nome de Deus”, que revela a outra faceta de sua história, que conta com argumento e criação de Pedro Bial.
Portanto, destaca-se que, em casos semelhantes de reviravoltas sociais, seus autores, roteiristas e diretores nunca imaginariam que as histórias, objeto de inspiração de suas criações artísticas, fossem ter um desdobramento tão adventício e que poderiam, eventualmente, ensejar o desejo de retirada de circulação ou modificação de suas obras, por entenderem que isso poderia afetar sua reputação ou imagem.
Por fim, reconhece-se que o diretor de obra audiovisual possui o direito de requerer a retirada de circulação/ suspensão de divulgação de sua obra quando entender que a perpetuação e continuidade desse fato possa acarretar danos irreversíveis à sua reputação e imagem. Contudo, esse fato pode, muitas vezes, encontrar obstáculos, caso entenda-se que deva prevalecer o interesse da sociedade no acesso à informação. Em casos nos quais haja uma clara colisão de valores, fia-se que haja uma ponderação entre eles, casuisticamente, de modo que a restrição aos bens jurídicos envolvidos na referida situação seja a menos danosa possível.
Outra opção viável nesses casos, seria o requerimento, por parte dos titulares dessas obras, de exclusão de seus nomes das futuras edições/ cópias das obras, ou até mesmo a inclusão de uma ressalva pela qual seria indicado que a obra foi baseada em fatos conhecidos e notórios na época de sua criação, não tendo, portanto, como seus autores terem tido conhecimento de eventuais desdobramentos posteriores do caso.