A discussão sobre a regulação da Inteligência Artificial (IA) no Brasil avança cada vez mais em densidade técnica e jurídica. Nos dias 9 e 10 de setembro de 2025, a Comissão Especial sobre Inteligência Artificial da Câmara dos Deputados promoveu nova rodada de debates sobre o PL 2338/2023, desta vez com foco nos impactos da IA generativa sobre os direitos autorais.
O tema é central para o futuro da propriedade intelectual, do desenvolvimento tecnológico e da inovação nacional, e foi abordado sob múltiplas perspectivas: empresas de tecnologia, entidades de gestão coletiva, juristas, especialistas em PI e inovação, além de representantes do Legislativo.
A seguir, apresentamos uma análise atualizada com os principais pontos trazidos na discussão, com destaque para os impactos jurídicos e estratégicos para os direitos autorais, empresas, desenvolvedores de IA e o setor de inovação como um todo.
1. A Centralidade do Treinamento de IA (TDM – Text and Data Mining)
O treinamento de modelos de IA requer o uso massivo de dados — prática conhecida como Text and Data Mining (TDM). Trata-se da etapa em que algoritmos “aprendem” padrões estatísticos, em regra sem copiar diretamente as obras, para gerar posteriormente conteúdos digitais (outputs).
O uso de obras protegidas nesse contexto foi um dos pontos centrais do debate. Veja os principais aspectos abordados:
- Diversos países já permitem o uso amplo de TDM com base em exceções, desde que não promova em prejuízo ou uma infração direta ao direito autoral.
- O treinamento é essencial para o avanço da IA, com impacto direto na educação, saúde, agronegócio, economia digital e segurança.
- Exigir licenciamento obra a obra em muitos casos é inviável: a dificuldade prática reside no fato de não haver uma solução técnica escalável que permita sempre identificar com precisão cada obra utilizada nos bancos de dados.
- O artigo 62 do PL, ao exigir o detalhamento completo das obras usadas no treinamento, foi duramente criticado por ser impraticável e oneroso.
- Foi proposta a substituição desse dispositivo por uma obrigação de apresentar um sumário do banco de dados utilizado, medida mais proporcional, técnica e transparente.
- Especialistas alertaram que uma regulação excessiva:
- Aumentará os custos das empresas, especialmente startups e pequenas/médias.
- Inviabilizará a pesquisa aberta e os ecossistemas acadêmicos.
- Concentrará o desenvolvimento em grandes players internacionais, dificultando a soberania digital brasileira.
- Se o Brasil for excessivamente restritivo, empresas poderão optar por treinar seus modelos no exterior, excluindo autores e conteúdos brasileiros da cadeia econômica.
- O modelo de opt-out foi amplamente defendido como solução técnica e jurídica viável, e funcionaria da seguinte forma: autores que desejarem restringir o uso de suas obras poderão sinalizar essa proibição em linguagem legível por máquina.
2. Treinamento ≠ Uso Direto de Obra Protegida: o Papel do “Fair Training”
Inspirado no fair use (EUA) e no uso justo, o conceito de fair training foi proposto, com base em três fundamentos:
- Os dados são utilizados apenas como insumos técnicos e aprendizagem exclusiva, não para reprodução integral.
- O aprendizado da máquina é análogo ao processo cognitivo humano de indução e generalização.
- A remuneração deve recair somente sobre o output, nos casos em que houver reprodução de obras autorais.
3. Regulação Focada no Output: Segurança Jurídica com Eficiência Econômica
A proposta amplamente defendida é de que a regulação se concentre no output, com foco em casos de:
- Concorrência desleal, quando o conteúdo gerado substitui ou impacta economicamente obras humanas.
- Cópias indevidas, especialmente se uma IA reproduz a obra protegida com base em treinamento prévio.
Modelo Europeu como Referência
A União Europeia já permite mineração de dados para fins de IA, desde que os autores não tenham feito opt-out expresso. Trata-se de um modelo balanceado que garante previsibilidade jurídica e incentiva a inovação com responsabilidade.
4. A Perspectiva das Entidades de Direitos Autorais: Remuneração pelo Input e Output
Por outro lado, entidades como ABRAMUS e outras do setor jornalístico manifestaram preocupação com a possível violação da cadeia de licenciamento tradicional. Seus principais argumentos foram:
- O input (material usado para treinar) é formado por obras protegidas e seu uso requer remuneração individualizada.
- O treinamento da IA seria, nessa visão, uma forma indireta de utilização econômica do conteúdo
- Representantes da imprensa argumentaram que não se trata apenas de proteger a reportagem publicada (texto, vídeo ou áudio), mas todo o processo editorial e jornalístico que está por trás dela.
- Propõem dois modelos de compensação:
- Modelo baseado no input: pagamento obrigatório pela inclusão de obras no treinamento.
- Modelo baseado no output: compensação quando o conteúdo gerado competir diretamente com obras existentes.
Esse modelo se aproxima do regime de remuneração compensatória, já previsto na Lei de Direitos Autorais brasileira para casos como cópia privada. Contudo, traz como contraponto a inviabilidade prática concernente à tecnologia, já verificada em diversos países.
5. Riscos de uma Regulação Exagerada: Oportunidade ou Retrocesso?
Especialistas apontaram riscos concretos caso a legislação brasileira adote um regime excessivamente restritivo para o uso de dados no treinamento:
- Encarecimento do desenvolvimento de IA, com prejuízo à competitividade nacional.
- Afastamento de investimentos estrangeiros e nacionais, principalmente no setor de inovação.
- Concentração de poder tecnológico em empresas estrangeiras, com prejuízo à soberania digital do Brasil.
- Perda de oportunidades econômicas para autores e empresas brasileiras que poderiam atuar em um mercado regulado de forma equilibrada.
6. Caminhos Propostos: Equilíbrio, Transparência e Incentivo à Inovação
As propostas mais consistentes e amplamente defendidas durante a sessão foram:
- Revisar o artigo 62 para exigir sumário dos dados utilizados (data sets), e não listagem individualizada de obras.
- Estabelecer legalmente o direito de opt-out por parte dos autores.
- Estimular acordos espontâneos entre desenvolvedores de IA e titulares de direitos.
- Garantir responsabilização clara no caso de outputs infrativos, com critérios objetivos.
- Criar dispositivos legais que fomentem o diálogo e a transparência, sem criar entraves técnicos ou jurídicos ao desenvolvimento tecnológico nacional.
Conclusão: Oportunidade de um Marco Legal da IA Equilibrado e Eficiente
O PL 2338/2023 representa uma janela histórica de oportunidade para o Brasil construir um marco regulatório moderno, funcional e equilibrado para a Inteligência Artificial com a promoção de benefícios exponenciais para a sociedade.
Assim é possível e necessário conciliar dentro da regulação da IA no Brasil:
- A proteção dos direitos dos criadores.
- A liberdade para inovação tecnológica.
- A efetividade dos sistemas e a segurança jurídica para todos os agentes envolvidos.
Nosso escritório acompanha de perto as atualizações legislativas sobre IA, inovação e propriedade intelectual.
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