“Poucas realidades no mundo são mais dinâmicas do que a chinesa e alguns analistas dizem que há uma nova China a cada 18 meses”. A frase é da diretora executiva da consultoria Vallya Agro, diretora do Conselho Empresarial Brasil China (CEBC), ex-assessora especial do Ministério da Agricultura e vice-presidente do Instituto de Relações Governamentais (Irelgov), Larissa Wachholz. Ela tem propriedade no assunto quando o tema é o gigante asiático porque liderou o núcleo China enquanto esteve no governo federal e fez mestrado em Estudos Contemporâneos pela Renmin University of China.
Larissa já tinha conhecido bem a parte mais “fácil” do mundo (EUA e Europa) e pensava em um desafio maior. Foi para a China passar seis meses, que viraram cinco anos. Ela é uma testemunha privilegiada dos segredos que transformaram o país em uma potência tecnológica: “a China já é a maior depositante de patentes no mundo, especialmente em tecnologia da informação”. Larissa alerta ainda que a “Terra do Meio”, como os chineses se referem ao país, está crescendo nas áreas de desenho industrial e, sobretudo, marcas.
Sobre a reputação de ser uma fonte de pirataria mundial, Larissa destaca a mudança de postura e afirma que Pequim está dos dois lados dessa história. Para a especialista em relações governamentais, se por um lado a China é acusada de se apropriar de propriedade intelectual alheia, por outro as empresas chinesas são cada vez mais detentoras de propriedade intelectual. E conclui com um conselho para os empresários que desejam investir no país de Mao: cercar-se de informação de confiança e buscar se aconselhar com quem conhece a China.
Larissa Wachholz compartilha um pouco da expertise sobre o gigante asiático nessa entrevista de 13 perguntas. Mas tudo bem, na China este não é o número do azar…
Larissa, você fez uma carreira acadêmica distante do mainstream. Em vez de ir para a Europa ou Estados Unidos, fez mestrado na China. O que motivou sua decisão? Qual foi sua estratégia?
Tive uma grande influência no gosto pela Ásia em minha própria casa: minha mãe. Como comissária de bordo, ela passou um tempo no Japão e estudou japonês nos anos 1970. Eu achava a história dela fascinante. Era uma grande referência para mim. Eu me mudei para China com 26 anos, depois de ter vivido períodos nos EUA e na França. Tinha a sensação de já ter conhecido bem a parte mais “fácil” do mundo e pensava em um desafio maior – uma região do mundo culturalmente mais distante da minha realidade. Tive, então, a oportunidade de estagiar em uma consultoria brasileira especializada em negócios com a China que mantinha um escritório em Pequim. Por meio da consultoria, fui enviada à China para um projeto de seis meses e acabei vivendo lá por cinco anos. Foi um período de aprendizagem e de amadurecimento muito intenso. A curiosidade e o senso de oportunidade foram, portanto, os elementos mais importantes.
Você fez mestrado em Estudos Contemporâneos da China. Quais são os estudos contemporâneos chineses? Sua dissertação em 2012 ainda é contemporânea? O objetivo da pergunta é pura curiosidade intelectual e saber como essa definição de contemporaneidade se comporta diante da velocidade dos tempos atuais.
Os estudos contemporâneos da China apresentam uma visão abrangente sobre os principais temas que englobam a presença chinesa no mundo de hoje: política, economia, sociedade, investimentos, comércio internacional e outros. Poucas realidades no mundo são mais dinâmicas do que a chinesa. Alguns analistas dizem que há uma nova China a cada 18 meses, então, os estudos contemporâneos da China, de fato, precisam ser sempre atualizados, a partir de viagens para a China e interação com os chineses. Minha dissertação de mestrado foi publicada em 2012, tratando dos investimentos chineses no Brasil. Ela permanece muito atual, dado que o Brasil foi e continua sendo um dos grandes receptores de investimento direto da China no mundo. Esse é o tema com qual eu trabalho diretamente há vários anos e fico muito satisfeita pela sua contemporaneidade. Acho que ainda há muito espaço para ser explorado do ponto de vista da atração de investimentos chineses para o Brasil e me realizo em continuar fazendo isso como sócia da Vallya Agro, que tem, entre seus objetivos, o de criar veículos para a atração de investimentos de capital privado, nacional e estrangeiro, inclusive chinês, para o agronegócio.
Larissa, qual foi a grande contribuição que a China em relação à inovação tecnológica, para o mundo?
Eu acho difícil singularizar “A” grande contribuição da China à inovação tecnológica no mundo. Foram tantas. Os chineses são grandes inventores. No passado podemos citar a bússola, a pólvora, o papel e a imprensa. Hoje, eu destacaria a contribuição aos setores de energias renováveis, telecomunicações e pesquisa espacial. Como exemplo, a disseminação do uso das energias renováveis mundo afora foi possível pelas inovações de processo que acarretaram enormes reduções dos custos de produção dos principais equipamentos, como placas solares e turbinas eólicas. Investimentos vultosos da China no setor fomentaram a produção em larga escala, o que reduziu o preço e aumentou a viabilidade dos projetos. Essa contribuição será ainda mais relevante no porvir, tendo em vista que o mundo passa por um processo de transição energética e de formatação de uma economia de baixo carbono.
Como é fazer relações governamentais e institucionais na China?
Existem estratégias específicas para se fazer relações governamentais na China, assim como existem em diversos lugares do mundo. Cada país tem suas peculiaridades. Na China, as estratégias dependerão do perfil da empresa e do setor e serão diferentes entre empresas locais ou multinacionais. Há de comum o fato de que, tanto empresas chinesas quanto estrangeiras poderão se valer fortemente de entidades, como associações, que coletivamente discutam os problemas pelas quais passam as diferentes indústrias. É interessante notar que as empresas multinacionais muitas vezes são percebidas pelo governo chinês como exemplo de boas práticas a serem seguidos pela indústria como um todo. Então, para alguns setores, percebemos que a regulação é proposta a partir de exemplos de outros países nos quais a China se espelha, e que as multinacionais que operam na China são criadoras de padrão para suas indústrias também junto ao regulador chinês. Eu tive a oportunidade de liderar uma viagem de estudos à China em 2019 na área de relações institucionais, da qual o escritório Di Blasi Parente & Associados participou. Foi uma experiência interessantíssima em que falamos com diferentes atores das relações governamentais na China. Estivemos na Bolsa de Xangai, em diferentes ministérios em Pequim, na Comissão Nacional de Reforma e Desenvolvimento (órgão planejador do governo chinês), em empresas que prestam serviços de relações governamentais e empresas multinacionais que lá operam. Aprendemos que as estratégias precisam ser adaptadas à realidade local, mas a atuação tem em comum, independentemente do país, a necessidade de se estar em constante diálogo com o regulador e de se construir uma reputação para que se possa ter um diálogo fluido.
Larissa, você foi assessora especial da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, então, conhece muito bem a potência econômica que a China representa. A China é o principal parceiro comercial do Brasil há mais de dez anos. O volume é quase o triplo do segundo colocado, os EUA. A agropecuária é um dos carros-chefes das exportações. Quais são os desafios de nossas exportações agrícolas para a China?
São dois os principais desafios das exportações agrícolas brasileiras para a China: o primeiro deles é a diversificação de produtos. A nossa pauta exportadora agrícola é focada em um portfólio reduzido, de alguns produtos que são os “carros-chefes”. A soja é de longe o produto mais importante na exportação do agro brasileiro para a China. Em segundo lugar, há o desafio da agregação de valor. A nossa pauta exportadora agrícola é muito focada em produtos de menor valor agregado. Nós já fizemos grandes progressos nessa área, inclusive, com uma participação mais importante das proteínas animais, o que representa uma grande agregação de valor. Incluímos, também, frutas, como o melão, que foi a primeira fruta brasileira a ser exportada para a China. Precisamos, no entanto, continuar trabalhando para incrementar a quantidade de produtos que exportamos e o valor agregado desses produtos para a China.
Qual é o peso da China na economia brasileira quando falamos em inovação?
Uma das grandes contribuições da China é conseguir reduzir o custo da produção de produtos mais sofisticados, por meio de inovações de processos e da enorme escala de produção do país. Muitos desses produtos participam como insumos de cadeias mais complexas da indústria brasileira em setores como os de energias renováveis, tecnologia da informação e automobilístico.
O Brasil exporta basicamente produtos agrícolas enquanto a China é uma grande exportadora de produtos industriais e tecnologia. Se compararmos alguns critérios, os dois países são muito parecidos: larga extensão territorial, amplo mercado interno, altos índices de pobreza e países subdesenvolvidos economicamente quando essa nomenclatura era usada até os anos 1990. O que podemos tirar de aprendizado desse contexto?
No início dos anos 1980, a China deu início a uma estratégia de desenvolvimento econômico chamada “Reforma e Abertura”, que teve como objetivo direcionar grandes fluxos de investimentos para o setor da infraestrutura e trabalhar pela atração de investimentos diretos de empresas de tecnologia, de produção industrial. Oferecia-se a tais empresas condições favoráveis como incentivos fiscais e área a um custo reduzido, além de mão de obra barata e com capacidade de qualificação. A produção a custos mais competitivos incentivou várias empresas estrangeiras a instalarem fábricas na China. Também houve um processo de transferência de tecnologia dessas empresas para empresas locais e houve um grande incentivo à educação, sobretudo à formação de engenheiros. Não foi, portanto, um único elemento que preparou a China para a posição de superpotência econômica que ela tem hoje. Foi uma conjugação de esforços diante de um contexto bastante específico, de uma grande população com disponibilidade de se mudar do campo para as cidades para trabalhar nessas fábricas.
Desde 2009, a China é o principal parceiro comercial do Brasil. E pensar que em 2000 o país não estava no ranking dos 10 principais parceiros comerciais com o Brasil. Como explicar essa mudança de foco e essa aproximação, que certamente não é por proximidade geográfica?
A relação comercial do Brasil com a China cresceu muito a partir de meados dos anos 2000 e é bastante complementar. O Brasil tem condição de produzir em larga escala produtos que a China tem necessidade de consumir em larga escala. Dado o tamanho da necessidade chinesa, com 1,4 bilhão de habitantes, a China necessita importar determinados produtos para garantir uma dieta variada à população. É nesse quesito que o Brasil se encaixa. A população chinesa se urbanizou e teve um incremento de renda muito importante ao longo das últimas décadas, o que fez crescer o consumo de proteína animal. A produção de proteína animal exige grãos para ração, que são aqueles que o Brasil produz com muita competência. Trata-se de uma aproximação comercial que faz muito sentido econômico.
O Brasil, junto com a China, faz parte do grupo internacional conhecido como BRICS, uma aliança diplomática que envolve também Rússia, Índia e África do Sul. Essa integração começou como um acrônimo cunhado pela agência de investimentos Goldman Sachs, em 2001, e ganhou forma política e econômica. Qual é a relevância e o status do BRICS atualmente?
O BRICS é uma oportunidade de diálogo regular do Brasil com outros países importantes no mundo, que têm algumas ambições semelhantes à brasileira quanto ao seu desenvolvimento econômico. É importante, então, que o Brasil mantenha a posição de estar aberto a se relacionar com diferentes países no mundo. Essa é uma grande qualidade da nossa diplomacia e se manifesta na participação do Brasil em organismos como o BRICS. Dos grandes feitos do BRICS foi a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), com a finalidade de fomentar a infraestrutura sustentável. É um feito de grande relevância um grupo de países nos quais o Brasil está envolvido colocar de pé uma instituição financeira do porte do NDB. É algo valoroso e de impacto no desenvolvimento econômico, tendo em vista a necessidade fundamental de infraestrutura eficiente para a competitividade e a produtividade.
A China saiu de uma imagem associada à pirataria e à indústria com produtos de baixa qualidade para uma potência tecnológica que se tornou a maior depositante de patentes no mundo. O que mudou? Como entender essa estratégia?
Em anos recentes, a China realmente aumentou muito seu protagonismo nos diferentes segmentos da propriedade intelectual – marcas, direito autoral, desenho industrial, patentes tecnológicas, cultivares. O país é, cada vez mais, um grande produtor de propriedade intelectual e, portanto, diretamente interessado em normas fortes que a protejam. Na área tecnológica, a China já é a maior depositante de patentes no mundo, especialmente em tecnologia da informação. A área em que ela ainda não é tão forte, mas já cresce, é a de desenho industrial e, sobretudo, marcas. A China ainda não tem grande número de marcas reconhecidas internacionalmente, o que seria condizente com a importância de sua economia. A principal mudança, portanto, foi a capacidade chinesa de produzir tecnologia, resultado de uma série de políticas voltadas a esse objetivo: dos projetos de transferência de tecnologia à formação de engenheiros, com boas doses de incentivo governamental e um mercado consumidor de larga escala.
Larissa, você é diretora executiva da Vallya Agro, uma assessoria econômico-financeira e estratégica para negócios, inclusive com a China. Quais são as perspectivas para os negócios entre o Brasil e a China?
Tanto no comércio quanto nos investimentos, a relação sino-brasileira é pujante e muito benéfica ao Brasil. Há uma necessidade permanente de diversificação de produtos e agregação de valor daquilo que exportamos, mas esse é um trabalho interno que precisamos fazer para aumentar a nossa competitividade em outras cadeias. O sucesso desse esforço teria reflexos positivos não apenas no comércio com a China. Em termos de investimentos, o Brasil já é um dos maiores recipientes dos investimentos diretos da China no mundo. Foram algumas ondas de capital chinês que chegaram até aqui, de recursos naturais a produtos de consumo, empresas de tecnologia e, finalmente, o setor de energia e infraestrutura. Aqui na Vallya estivemos atuantes em todos estes segmentos e colhemos bons frutos. Agora, com a Vallya Agro, estamos também dedicados a aumentar a exposição do capital chinês ao agro brasileiro. Vemos no segmento agro um grande potencial, dado que o fluxo comercial é muito robusto. Em termos de perspectivas, eu destacaria ainda o setor das energias renováveis e tudo o que diz respeito à transição energética. As empresas chinesas estão muito dedicadas ao avanço tecnológico nessa frente.
Inovação é o motor da economia e PI está diretamente ligada à proteção da inovação. Quando se fala em inovação e propriedade industrial na China, há algumas preocupações. Até onde essas preocupações são mitos ou representam um risco real aos negócios com os chineses? Como lidar com a questão de propriedade industrial na China?
O regime internacional de propriedade intelectual é muito importante e é do nosso interesse fortalecê-lo constantemente, mas é preciso reconhecer que muitos atores violam regras, não é só a China que faz isso. Para países que estão na fronteira tecnológica, como os Estados Unidos, alguns países europeus, China e Japão, isso é um problema crônico. Provavelmente as acusações dos Estados Unidos e de países europeus sobre a China têm fundamento, mas é importante que se saiba que o contrário também é verdade. Na fronteira tecnológica, há muita apropriação indevida de tecnologia. Basta ver que disputas judiciais entre empresas são frequentes. Algumas das empresas chinesas estão entre as maiores depositantes de patentes no mundo, particularmente a Huawei e a ZTE. A China está, portanto, dos dois lados dessa história. É acusada de se apropriar de propriedade intelectual alheia e, ao mesmo tempo, as empresas chinesas são cada vez mais detentoras de propriedade intelectual e, em alguns casos, entendem que há apropriação indevida de sua própria propriedade intelectual.
Que conselho você daria a quem quer fazer negócio com a China?
O principal conselho é: cercar-se de informação de confiança e buscar se aconselhar com quem conhece a China. É preciso compreender a indústria na qual você está inserido e como é que ela funciona de fato. Principais players, entidades, regulação. Enfatizo que é importante entender o contexto regulatório – muitos setores na China estão passando por uma revolução em matéria de legislação. Parece óbvio que precisa ser feito, mas nem sempre é fácil, dada a lacuna de conhecimento sobre a China no Brasil. É preciso fazer um esforço de ir atrás dessas informações, buscar ler fontes chinesas e se informar adequadamente com potenciais parceiros de negócios, consultorias, escritórios de advocacia e outros players desse setor que compreendam a realidade local. Finalmente, sugiro atenção às questões locais de construção de relação de confiança por meio de redes de relacionamento estável e compreensão da hierarquia local.