Os últimos anos foram desafiadores para o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), com pandemia, atrasos nos pedidos de depósito de patentes e defasagem de profissionais na força de trabalho. Mas o esforço tem sido reconhecido e será recompensado. Essa é a visão da Diretora de Patentes, Programas de Computador e Topografias de Circuitos Integrados do INPI, Liane Lage, que atualmente coordena o Plano de Combate ao Backlog de patentes no instituto. Doutora em Engenharia Química pela Coppe/UFRJ, ela vê uma “lacuna abismal” na formação do profissional de Propriedade Industrial no Brasil, na comparação com os países desenvolvidos: “estamos atuando diretamente na base, para fomentarmos um Sistema de Inovação robusto“.
Nessa entrevista, Liane Lage falou dos desafios do INPI, as estratégias no combate ao backlog, as tendências de registros de patentes em 2022 e a possível abertura de concurso público para vagas no instituto para repor a força de trabalho ainda este ano: “há um desequilíbrio entre a carga e a força de trabalho disponível, em particular em áreas críticas como tecnologias de comunicações e biotecnologia”.
Leia a entrevista na íntegra:
1. Seria possível definir em quais principais áreas foi maior o volume de pedidos de patentes no INPI em 2021? O que você acredita que vai crescer em 2022?
Para fazermos uma análise sobre as tecnologias mais depositadas nos últimos anos, temos que considerar dois fatores, o período de sigilo de 18 meses previsto no artigo 30 da lei 9.279/96, a Lei de Propriedade Industrial (LPI), bem como o período de 30 meses, previsto no acordo do PCT para a entrada na fase nacional dos depósitos internacionais. Desta forma, para uma resposta mais precisa, devemos considerar os principais campos tecnológicos identificados entre os pedidos de patentes de invenção depositados no ano de 2018, ano mais recente com maior número de pedidos classificados (95%) e publicados até dezembro de 2019.
Segundo relatório de estatística do INPI, em 2018, os campos tecnológicos mais reivindicados para os não residentes foram Produtos Farmacêuticos, Tecnologia Médica, Química Orgânica Fina e Biotecnologia. Os residentes, por sua vez, tiveram como principais campos tecnológicos: Outras Máquinas Especiais, Tecnologia Médica, Engenharia Civil, Produtos Farmacêuticos e Transporte.
Creio que a pandemia ainda será o norte para o investimento em novas criações e, portanto, os campos de Tecnologia Médica e Produtos Farmacêuticos ainda prevalecerão.
2. Numa palestra na Fiesp, o presidente do INPI, Claudio Vilar Furtado, disse que o a agência não é apenas para registros, mas também uma indutora no processo de inovação. Na sua visão, como é possível tornar o Brasil um polo de inovação? Quais gargalos devemos solucionar e onde temos que focar?
Em minha percepção, o principal gargalo está na falta de cultura do empreendedorismo baseado na inovação, verificando-se um desconhecimento do conceito de propriedade intelectual no Brasil. Nem os nossos profissionais da área tecnológica e do direito adquirem este conhecimento na sua formação e, consequentemente, há um total desconhecimento sobre o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, o INPI. É uma lacuna abismal na nossa formação profissional. Se compararmos com os países mais desenvolvidos, verificamos que estes conceitos permeiam a educação desde o ensino básico.
A pesquisa no Brasil está concentrada nas universidades e nos centros de pesquisa, a maioria com recursos públicos. Entretanto, apesar de gerarmos muito conhecimento científico, não temos transformado este conhecimento em produtos ou processos que cheguem à sociedade.
No passado, o INPI investiu muito na disseminação deste conhecimento nos Núcleos de Inovação Tecnológica das universidades. Atualmente, vem trabalhando junto a empresas, por meio do Programa INPI Negócios, para auxiliar o empreendedor a compreender o valor da PI, a proteger seus ativos no Brasil e no exterior e a conhecer as regras do Sistema de Propriedade Intelectual, para usá-las de forma estratégica. Por meio de telementoria em PI, do nível básico ao avançado, a autarquia tem alcançado centenas de pesquisadores em todo Brasil. Estamos atuando diretamente na base, para fomentarmos um Sistema de Inovação robusto. Temos criatividade e ciência e precisamos conectar estes pontos, para nos transformamos em um polo de inovação.
3. Embora o ano de 2021 tenha demonstrado crescente número de inovação por parte do empresário brasileiro para superar o contexto de crise gerada pela pandemia, por outro lado, houve diminuição no número de pedidos de patentes no INPI. Segundo dados do próprio INPI, o número de pedidos de patentes no Brasil vem sofrendo decréscimo pelo terceiro ano consecutivo. Qual seria a razão para essa queda e como superar essa tendência? Quais são os impactos dessa queda para a autarquia e para a sociedade?
Eu diria que é uma composição de vários fatores. Mas, na minha análise, creio que o principal desafio é a percepção dos usuários sobre a insegurança jurídica. Sem entrar no mérito da questão, o ano de 2021 trouxe alterações na Lei de Propriedade Industrial (LPI) que imprimiram uma grande desconfiança no setor de inovações tecnológicas. É inegável que uma mudança legislativa, 26 anos após a promulgação de uma lei, tem suas consequências. Principalmente quando tem efeitos na vigência de patentes já concedidas. Além disso, as discussões envolvidas nas questões de licença compulsória, com o clamor de uma pandemia, criaram um ambiente de maior desconfiança.
Por outro lado, foi revogado um artigo que, desde sua inclusão na LPI, provocou grande polêmica: o Artigo 229-C, que estabelecia a participação da ANVISA na concessão de produtos e processos farmacêuticos.
Com um olhar mais positivo, poderíamos dizer que estas alterações podem ser o prenúncio de um sistema mais adequado para o futuro, com menos questões sensíveis. Também já se observa uma maior governança da propriedade intelectual no Brasil, pela reativação do GIPI – Grupo Interministerial da Propriedade Intelectual, sob a coordenação do Ministério da Economia, e a Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual, lançada em dezembro de 2020, que possui sete eixos de ação:
1- PI para a Competitividade e o Desenvolvimento;
2 – Disseminação, Formação e Capacitação em PI;
3 – Governança e Fortalecimento Institucional;
4 – Modernização dos Marcos Legais;
5 – Observância e Segurança Jurídica;
6 – Inteligência e Visão de Futuro; e
7 – Inserção do Brasil no Sistema Global de PI.
É evidente que o INPI é o núcleo de todo este sistema e é fundamental que tenha condições financeiras, orçamentárias e administrativas para a concessão dos direitos de patentes, marcas, desenho industrial e indicações geográficas com eficiência e qualidade. Infelizmente, o cenário atual não é muito animador em termos orçamentários, mas tenho a confiança de que será revertido. Para isto, é preciso que a sociedade, representada pelas associações de classes, atuem diretamente junto ao poder legislativo, destacando a importância do INPI para o desenvolvimento social e econômico do país.
4. Um dos grandes problemas do INPI no tempo de análise de uma patente é a falta de servidores. Há alguma previsão de novos concursos para esse ano?
Com o “Combate ao Backlog”, o INPI demonstrou toda a sua capacidade de gerenciamento de pessoas e processos e obteve resultados inimagináveis. De forma muito clara, os resultados demonstraram que há um desequilíbrio entre a carga e a força de trabalho disponível, em particular em áreas críticas como tecnologias de comunicações e biotecnologia. Evidentemente o investimento em infraestrutura, como por exemplo tecnologia da informação e inteligência artificial, poderia acarretar um adicional nestes resultados. Ainda assim, é indubitável a necessidade de uma autorização para a realização de concurso público.
Estamos atualmente trabalhando em um modelo de cálculo desenvolvido pela Universidade de Brasília para o Dimensionamento da Força de Trabalho (DFT), em conjunto com o Ministério da Economia, e esperamos que o resultado deste trabalho possa dar subsídios para esta autorização ainda este ano.
5. A falta de servidores é uma das razões que leva ao atraso no exame de patentes, provocando o backlog. Esse passivo colocou o exame de patentes no Brasil entre um dos mais demorados de todos os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC). Quais são as estratégias para combater o backlog de patentes em 2022?
O aproveitamento da busca de anterioridades e do exame realizados por outros escritórios parceiros é uma realidade e já está incorporado no nosso trabalho. Então, esta é uma estratégia que será continuada, com a consequente redução do esforço para a análise de um pedido de patente e o aumento da produtividade. Evidentemente, à medida que avançamos no exame, teremos menos possibilidade deste aproveitamento e, se não repusermos imediatamente a força de trabalho que necessitamos, teremos o retorno ao backlog nos próximos anos. Lembrando que, para algumas tecnologias, ainda não estamos em uma zona de conforto considerando o backlog.
6. Quais foram os principais impactos no exame de patentes após a promulgação da Lei nº 14.195/2021, que extinguiu a exigência de anuência prévia da ANVISA no caso de patentes farmacêuticas?
Ao longo dos anos da vigência do Artigo 229-C, inserido na LPI em 2001, e de todas as controvérsias no seu entorno, o exame da área farmacêutica foi muito impactado, embora tivéssemos um número adequado de profissionais altamente capacitados para fazer este exame, em sua maioria doutores na área de formação. O fluxo de processos desbalanceado entre ANVISA e INPI acarretou no aumento do backlog da área. Com a revogação do artigo, em 2021, a ANVISA devolveu todos os processos que estavam em sua carga de trabalho e o INPI empreendeu uma força tarefa para a publicação imediata da exigência preliminar, conforme o Plano de Combate ao Backlog. Hoje, já imprimimos um ritmo mais acelerado no exame desta área e esperamos vencer este backlog com a continuidade do plano na FASE II.
7. O INPI já publicou todas as patentes que tiveram os seus prazos reduzidos, em razão da ADI 5.529 (Ação Direta de Inconstitucionalidade)? Quais foram as consequências ao INPI desta decisão?
As consequências imediatas ao INPI foram de impacto operacional, uma vez que nossos recursos de TI são muito escassos e tivemos que realizar muitas tarefas manualmente. Os nossos sistemas já foram ajustados para o efeito ex nunc da decisão, isto é, para todas as patentes concedidas, após a decisão, o prazo de validade da patente é de 20 anos após o depósito.
Fomos muito cautelosos e transparentes ao aplicar a decisão da ADI 5529, desde a decisão liminar. Para tal, fizemos diversos comunicados na RPI, falamos às diversas associações, de modo a buscar as melhores soluções para o cumprimento da decisão. O primeiro comunicado (RPI 2623) referiu-se à decisão liminar, de 07 de abril de 2021, aplicada apenas a patentes de produtos e processos farmacêuticos e a equipamentos e/ou materiais de uso em saúde, que passaram a ter o seu prazo corrigido para 20 anos após o depósito. Foi informado que as patentes de produtos e processos farmacêuticos seriam identificadas pela classificação que atende ao artigo 229-C, e os equipamentos e materiais de saúde seriam identificados pela matéria reivindicada.
Visando à maior segurança jurídica, procuramos automatizar parcialmente o processo de seleção das patentes para aplicação da decisão liminar, a partir da revista 2624. Para melhor identificação das patentes, estabelecemos uma metodologia que separava a matéria em três grupos: pedidos enviados à ANVISA; pedidos incluídos no campo de tecnologias médicas, segundo classificações elencadas pela OMPI; e pedidos que apresentem classificações pertinentes à saúde humana, elencados pelos técnicos do INPI.
Em 13 de maio de 2021, foi proferida a decisão da ADI 5529 que extinguiu o dispositivo previsto no parágrafo único do art. 40 da LPI, o mesmo não sendo mais aplicado às patentes concedidas a partir desta data. Todas as patentes de invenção concedidas a partir desta data passaram a ter a vigência de 20 anos e todas as patentes de modelo de utilidade concedidas a partir desta data passaram a ter a vigência de 15 anos, contadas a partir da data de depósito.
Considerando a modulação da decisão publicada, que estabelecia o efeito ex tunc, ou seja, retroativo, às patentes relacionadas a produtos e processos farmacêuticos e a equipamentos e/ou materiais de uso em saúde, para fins de ajuste de vigência e de eventual extinção, foram consideradas todas as patentes concedidas com alguma extensão de prazo (nos termos do extinto parágrafo único do Art. 40), que ainda estavam vigentes em 14/05/2021. As patentes concedidas com extensão de vigência foram divididas em dois grupos: i) patentes que ainda não ultrapassaram 20 anos da data do depósito (ou 15 anos, para modelos de utilidades); e ii) patentes de invenção que ultrapassaram 20 anos da data do depósito (ou 15 anos, para modelos de utilidades).
Considerando estes dois grupos, temos as seguintes situações: (i) as patentes relativas à matéria, concedidas com extensão de vigência, mas que ainda estavam fora do prazo de extensão e em 14/5/2021 foram REPUBLICADAS, para ajuste de vigência e; (ii) aquelas concedidas com extensão de vigência e já no prazo de extensão em 4/5/2021 e foram REPUBLICADAS, para ajuste de vigência, e EXTINTAS.
O INPI procedeu todas as correções de seus atos quando justificados, mas entendeu ser necessário abrir um procedimento que possibilitasse uma reconsideração, antes de abrir prazo para recurso, comunicando esta decisão na RPI 2635. Cada pedido de restauração passou a ser analisado caso a caso. Neste sentido, verificamos a necessidade de criação de um procedimento para os casos em que a patente protege matérias que ultrapassam o limite da área farmacêutica e ou produtos/equipamentos de saúde, para aplicação em humanos. Nestes casos, em função da decisão da ADI, uma mesma patente protege matérias com distintos prazos de vigência. Decidiu-se, por um procedimento de apostilamento, o qual teve sua publicação na RPI 2666.
Como dito anteriormente, estamos tendo um grande impacto operacional, que em virtude da falta de recursos humanos e de recursos de tecnologia de informação, impactam nos resultados técnicos da DIRPA, uma vez que nossa mão de obra técnica tem sido deslocada para a realização destes ajustes. Importante ressaltar que a lista das patentes cujo prazo sofreram alteração foi publicada a cada revista.
8. Quais foram os critérios usados na seleção de patentes que tiveram seus prazos reduzidos, uma vez que, patentes da mesma área, como por exemplo de saúde, tiveram critérios distintos de seleção?
Como visto os procedimentos foram sendo criados e publicitados passo a passo. Os critérios foram estabelecidos e baseados em classificações. Assim foram consideradas as patentes enviadas para análise da ANVISA, para fins de concessão de anuência prévia, as patentes com classificação IPC A61B, A61C, A61F, A61G, A61H, A61J, A61L, A61M, A61N; H05G (tecnologias associadas à medicina segundo a OMPI) e as patentes com classificação IPC A61K/6, C12Q/1, G01N/33, G16H, procurando assegurar que a matéria esteja relacionada à saúde humana.
Destaque no final:
Liane Lage é diretora do Diretoria de Patentes, Programas de Computador e Topografias de Circuitos Integrados do Instituto Nacional de Propriedade Industrial desde 2018. Liane é engenheira química pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, mestre (1984) e doutora (1998) pelo Programa de Engenharia Química da Coppe/UFRJ. Desde 1998, é pesquisadora em Propriedade Industrial no INPI, tendo assumido o cargo de chefe da Divisão de Química Orgânica em 2004. De 2011 até 2018 conduziu a Coordenação-Geral de Patentes I. Atualmente, coordena o plano de combate ao backlog de patentes no INPI.